
O Santo Padre disse, recentemente, que a “reforma litúrgica é irreversível”, referindo-se, naturalmente, à reforma litúrgica do Vaticano II, presente na Constituição Conciliar da Sagrada Liturgia “Sacrosanctum Concilium”.
Ocorreu-nos, de imediato, a pergunta: “mas qual reforma litúrgica?” É que não conhecemos nenhuma igreja onde se celebre a Santa Missa como a desejaram os padres conciliares. Na verdade, há um local onde se celebra a Santa Missa exactamente como saiu do Vaticano II. Por agora, no entanto, creio que seria importante olharmos para a Sacrosanctum Concilium e deixar os próprios padres conciliares dizerem-nos o que é a reforma litúrgica.
Como se fizéssemos uma entrevista a um dos padres conciliares:
P (pergunta): Antes do Concílio Vaticano II usava-se o latim como língua litúrgica; as missas eram em latim; depois o Concílio recomendou que passássemos a usar o vernáculo…
R (Resposta): Peço desculpa, mas permita-me que o interrompa, antes de formular a sua pergunta, porque o seu intróito já não vai na direcção correcta… Nós, os padres conciliares não recomendámos que se passasse a utilizar o vernáculo!
P: Não?… Como assim?… A missa hoje é sempre em vernáculo… e, antes do Concílio, não era!
R: Sim, isso é verdade, mas se ler o documento onde deixámos escrito quais as orientações para a reforma litúrgica, a Constituição Conciliar da Sagrada Liturgia “Sacrosanctum Concilium”, verá que não se diz isso em lado algum! Permita-me que cite, no que diz respeito à língua: “Deve conservar-se o uso do latim nos ritos latinos, salvo o direito particular.” (36. § 1). Esta é a norma: conservar o latim; depois definem-se as excepções possíveis, mas o princípio orientador é: a missa deve ser em latim; sugere-se que o vernáculo ocupe lugar nas leituras, por exemplo, como se compreenderá facilmente…
P: Isso deixa-me perplexo! Mas vamos, então, para outro tema… A música! A música faz parte inerente da liturgia e libertou-se de formas arcaicas desde o Vaticano II, não? Já praticamente não se canta em latim, por exemplo?
R: Bom, na verdade, não era bem isso que nós tínhamos em mente, no nosso espírito conciliar…
P: Não?
R: Não. Desculpe, mas preciso de citar, novamente, porque vejo que pode parecer difícil de entender; em relação à língua, no capítulo sobre a música sacra (IV) diz-se que devemos seguir o que enuncia o artigo 36, que citei antes, e, por isso, aponta também para uma preferência pelo latim… abrindo, naturalmente, também aqui a possibilidade da utilização do vernáculo, mas o princípio norteador é a conservação do latim. O artigo 114 afirma: “Guarde-se e desenvolva-se com diligência o património da música sacra. Promovam-se com empenho, sobretudo nas igrejas catedrais, as «Scholae cantorum».” Assim se estimulam até as escolas de música sacra que poderiam preservar o maravilhoso património musical da Igreja. Muitas pessoas, hoje, têm de comprar em disco aquilo que antes ouviam habitualmente na missa dominical ou, pelo menos, nas grandes celebrações litúrgicas.
P: …mas está-me a dizer que também há um tipo de música recomendada, é isso?
R: Sim… o canto gregoriano! Vou-lhe ler (ponto 117): “A Igreja reconhece como canto próprio da liturgia romana o canto gregoriano; terá este, por isso, na acção litúrgica, em igualdade de circunstâncias, o primeiro lugar.” No entanto, diz–se também, “não se excluem todos os outros géneros de música sacra, mormente a polifonia, na celebração dos Ofícios divinos, desde que estejam em harmonia com o espírito da acção litúrgica”. Mas o espírito que preside a este documento é bastante “conciliar”, de facto, e por isso, também estimula o “canto popular religioso” (ponto 118), por exemplo.
P: Já agora, também definiram os instrumentos musicais?
R: Sim… Repare (ponto 120): “Tenha-se em grande apreço na Igreja latina o órgão de tubos, instrumento musical tradicional e cujo som é capaz de dar às cerimónias do culto um esplendor extraordinário e elevar poderosamente o espírito para Deus.” Novamente, o Concílio permitiu outras possibilidades, mas que teriam de ter o “consentimento da autoridade territorial competente” e, mesmo assim, apenas se “esses instrumentos estejam adaptados ou sejam adaptáveis ao uso sacro, não desdigam da dignidade do templo e favoreçam realmente a edificação dos fiéis.” Digamos que uma guitarra eléctrica ou uma bateria, não são aquilo que estaria na mente dos Padres conciliares… Menos ainda a música rock a que esses instrumentos estão associados.
P: Só faltava dizer-me que o Concílio também queria que o sacerdote estivesse de costas para o povo!…
R: …Bom, na verdade nunca a Igreja desejaria que o sacerdote celebrasse “de costas para o povo”!
P: Ah! Ao menos isso!
R: Eu explico-me melhor, pois já vi que não percebeu o que eu quis dizer! A missa de todos os tempos sempre foi celebrada voltada para o oriente, na direcção do tabernáculo, tirando aqueles momentos em que o sacerdote se dirige ao povo explicitamente. A Santa Missa não é um espectáculo para o povo! É a celebração de um sacrifício, por isso deve ocorrer num altar (e não numa mesa) e voltado para Deus (que para nós está no tabernáculo) e é a quem estamos a oferecer o sacrifício; imagine que se dirigia a alguém para lhe oferecer uma prenda, não o faria de costas, não é verdade? Isso seria uma grande falta de educação… Assim, o sacerdote não estava “de costas para o povo”! Estava voltado na mesma direcção que o povo, humildemente unido a ele, e todos voltados na mesma direcção.
P: Mas, agora a sério, não saiu um missal deste Concílio? E este missal não diz que a “missa nova” deve ser celebrada na direcção do povo?
R: Sim, saiu um missal novo, o chamado “Missal de Paulo VI”, mas nas rubricas deste missal está pressuposto que o sacerdote está sempre voltado para o oriente…
P: Ah, ah! Se não diz explicitamente, se está apenas “pressuposto”, isso quer dizer que pode estar implícita a celebração voltada para o povo! R: Na verdade, não, porque sem se dizer que o sacerdote deve estar voltado ad orientem, diz-se, no entanto, nas rubricas, os momentos, os únicos momentos!, em que o sacerdote se deve voltar para o povo!
- a língua devia ser predominantemente o latim, embora se possa usar o vernáculo (por exemplo nas leituras e homilias);
- a música devia ser predominantemente canto gregoriano ou polifónico, embora também haja lugar para o canto popular religioso, por exemplo;
- o sacerdote devia celebrar voltado para o oriente ou o tabernáculo, embora se volte para o povo sempre que se lhe dirige (por exemplo, nas homilias e leituras);Mas isto não é muito parecido com o que era antes do Concílio?
R: Sim, porque como se diz neste mesmo documento a ideia central não era proceder a inovações, de todo! No ponto 23, define-se qual o espírito que deveria presidir a esta reforma litúrgica: “não se introduzam inovações, a não ser que uma utilidade autêntica e certa da Igreja o exija, e com a preocupação de que as novas formas como que surjam a partir das já existentes.” Repare, o princípio norteador de todo o documento e, por isso, de toda a reforma, é: “não se introduzam inovações”! E, no caso de serem introduzidas, apenas se isso ocorrer, como ocorreu sempre na história das reformas litúrgicas da Igreja, como um crescimento orgânico, naturalmente decorrente das formas anteriores, por isso se diz que “as novas formas como que surjam a partir das já existentes.” Isto não podia ser de outra forma, uma vez que (ponto 8) “Pela Liturgia da terra participamos, saboreando-a já, na Liturgia celeste celebrada na cidade santa de Jerusalém, para a qual, como peregrinos nos dirigimos e onde Cristo está sentado à direita de Deus, ministro do santuário e do verdadeiro tabernáculo”. Já viu o que isto significa? A importância que a Igreja dá à liturgia?
P: Tudo isto, faz-me pensar no Papa Bento XVI e, mais recentemente, no Cardeal Sarah…R: Sim, na verdade, aquilo que ambos desejam é fazer o que não tinha sido feito: implementar as reformas litúrgicas do Concílio Vaticano II! É que missa como a conhecemos hoje parece ter sido feita a partir das excepções e sem respeitar o espírito do Concílio tão propalado para justificar as alterações!
P: Dito assim, soa estranho… Mas, então, aquilo que disse agora o Papa Francisco: “a reforma litúrgica é irreversível” é, certamente, nesse sentido de realizar a reforma litúrgica de acordo com o que me diz do Sacrosanctum Concilium, não?
R: Isso seria assunto para outra conversa, mas podemos sempre perguntar ao Cardeal Sarah, que é, afinal, o Prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos…
Este texto foi publicado na plataforma Academia.edu em novembro de 2017.
Nota da edição: o artigo acima é da inteira responsabilidade do seu autor, neste caso o filósofo português Pedro Sinde, a presente edição visa apenas a sua divulgação.
Excelente texto! Temos ainda a importância dada no Concilio ao Santo Sacrifício da missa em relação ao convívio que nos é oferecido:
Sacrossantum Concilium (1963): “[Os fiéis] aprendam a oferecer-se a si mesmos, ao oferecer juntamente com o sacerdote, que não só pelas mãos dele, a hóstia imaculada”
Lumen Gentium (1964): “[Os bispos] exortam e instruem o seu povo para que participe com fé e reverência na Liturgia, principalmente no santo sacrifício da missa.”
instrução Eucharisticum Mysterium (1967): “Os fiéis participam mais plenamente neste sacramento de acção de graças, propiciação, petição e louvor, não só quando oferecem de todo o coração a Vítima Sagrada, e nela eles mesmos, ao Pai com o sacerdote, mas também quando recebem a mesma vítima sacramentalmente.”
Até parece que ocorreu uma certa desorientação, basta ler mesmo os documentos das instruções com alterações para ver a diferença em relação ao que obtemos ou nos é indicado que obtemos, por exemplo:
de 1970 “The bishops’ mastery of the knowledge needed greatly assists priests in the ministry they exercise in due hierarchic communion [6] and facilitates that obedience required as a fuller sign of worship and for the sanctification of souls.” em https://adoremus.org/2007/12/31/Liturgicae-Instaurationes/
de 1980 em https://adoremus.org/2007/12/31/Inaestimabile-Donum/
“But these encouraging and positive aspects cannot suppress concern at the varied and frequent abuses being reported from different parts of the Catholic world: the confusion of roles, especially regarding the priestly ministry and the role of the laity (indiscriminate shared recitation of the Eucharistic Prayer, homilies given by lay people, lay people distributing Communion while the priests refrain from doing so); an increasing loss of the sense of the sacred (abandonment of liturgical vestments, the Eucharist celebrated outside church without real need, lack of reverence and respect for the Blessed Sacrament, etc.); misunderstanding of the ecclesial character of the Liturgy (the use of private texts, the proliferation of unapproved Eucharistic Prayers, the manipulation of the liturgical texts for social and political ends). In these cases we are face to face with a real falsification of the Catholic Liturgy: “One who offers worship to God on the Church’s behalf in a way contrary to that which is laid down by the Church with God-given authority and which is customary in the Church is guilty of falsification.””
“None of these things can bring good results. The consequences are — and cannot fail to be — the impairing of the unity of Faith and worship in the Church, doctrinal uncertainty, scandal and bewilderment among the People of God, and the near inevitability of violent reactions.”