D. Sviatoslav Shevchuk, arcebispo-mor de Kiev-Halych, líder da Igreja Greco-católica Ucraniana, tem sido uma voz ativa e permanente no apoio pastoral ao povo ucraniano e na condenação da agressão russa. Desde o início da invasão russa em larga escala, no dia 24 fevereiro de 2022, o líder da maior igreja católica oriental tem transmitido, através das redes sociais, videomensagens diárias para o povo ucraniano.
Fragmento de uma mina que destruiu a fachada de uma Igreja Greco-Católica Ucraniana na cidade de Irpin, nas proximidades de Kiev. Fonte: Vatican Media via synod.ugcc.ua.
Aconteceu na passada segunda-feira, 7 de novembro, quando o Arcebispo-mor D. Sviatoslav Shevchuk foi recebido em audiência, no Vaticano, pelo Papa Francisco.
“Quero transmitir ao Santo Padre e à Santa Sé a dor do povo ucraniano e falar pessoalmente sobre os horrores da guerra pela qual o povo ucraniano está a passar.”
D. Sviatoslav Shevchuk in ugcc.ua (tradução nossa).
Shevchuck veio explicar a Francisco que “a guerra na Ucrânia é uma guerra colonial e as propostas de paz vindas da Rússia são propostas de apaziguamento colonial”.
“Essas propostas envolvem a negação da existência do povo ucraniano, a sua história, cultura e até mesmo a igreja. É a negação do próprio direito à existência do Estado ucraniano, reconhecido pela comunidade internacional com sua soberania e integridade territorial”.
Fonte: Secretariado do Arcebispo-Mor da Igreja Greco Católica Ucraniana, via catholicnewsagency.com.
O líder da Igreja Greco-Católica Ucraniana tem permanecido no país desde o início da invasão, com uma pastoral ativa e permanente no terreno e através das redes sociais, denunciando diariamente os crimes da agressão russa à Ucrânia. Em abril, o arcebispo católico visitou as localidades Irpin, Bucha e Gostomel, na Ucrânia, após a retirada russa, onde rezou pelas vítimas do putinismo.
Numa mensagem de vídeo dirigida à sua alma mater em Roma, o líder da Igreja Greco-Católica Ucraniana pediu à academia católica que estude as ambições neoimperiais da Federação Russa.
“Peço-lhes que não fiquem em silêncio”, disse, no dia 19 de outubro, o arcebispo-mor D. Sviatoslav Shevchuk, de Kyiv, num relatório por ocasião do início do novo ano académico na Pontifícia Universidade de São Tomás de Aquino, em Roma. O arcebispo Shevchuk, que se doutorou em teologia moral no Angelicum, em 1999, falou sobre a ideologia do “mundo russo”, que ele afirma estar a ameaçar não apenas a sua nação, mas também as relações políticas e ecuménicas internacionais.
A teoria do mundo russo, ou Russkiy Mir, afirma que existe uma “esfera ou civilização russa transnacional, chamada Santa Rússia ou ‘Santa Rus’, que inclui a Rússia, a Ucrânia e a Bielorrússia (e às vezes Moldova e Cazaquistão), assim como russos étnicos e pessoas de língua russa em todo o mundo”, de acordo com uma declaração elaborada pelo Centro de Estudos Cristãos Ortodoxos na Universidade de Fordham. “Sustenta que este ‘mundo russo’ tem um centro político comum (Moscovo), um centro espiritual comum (Kyiv, como a ‘mãe de todos os Rus’), uma língua comum (o russo), uma Igreja comum (a Igreja Ortodoxa Russa, Patriarcado de Moscovo) e um patriarca comum (o Patriarca de Moscovo), que trabalha em ‘sinfonia’ com um presidente/líder nacional comum (Putin) para governar este mundo russo, bem como defender uma comum espiritualidade, moralidade e cultura próprias.”
Um “verdadeiro genocídio”
No seu discurso , o arcebispo Shevchuk acusou a Rússia de estar a realizar um “verdadeiro genocídio do povo ucraniano”. No início da invasão do país por Vladimir Putin em 24 de fevereiro, a agência de imprensa russa RIA Novosti publicou o que Shevchuk chamou de manual sobre o genocídio de ucranianos.
“Este é um programa flagrante de eliminação completa da nação ucraniana enquanto tal, que o historiador Timothy Snyder [da Universidade de Yale] descreveu como um dos documentos genocidas mais abertos”, disse Shevchuk. “Este documento pede claramente a eliminação do estado ucraniano e do povo ucraniano.”
“Soldados russos aderem a cada letra deste manual para a destruição de ucranianos”, disse ele.
Disse ainda que é “um verdadeiro choque para nós ver a justificativa cristã dessa ideologia assassina, testemunhar a completa harmonia entre as autoridades do Kremlin e a Igreja Ortodoxa Russa. Desde p Patriarca Kirill aos padres que justificam metodicamente esses crimes, vemos como a fé cristã se torna uma ferramenta ideológica para promover o nazismo russo. A justificativa e o apelo à guerra por parte da Igreja Ortodoxa Russa lembram cada vez mais a doutrina do Estado Islâmico. Aliás, os líderes desta Igreja citam-na literalmente, embora a cubram de roupagem cristã. Recentemente, vemos até mesmo os seus clérigos em paramentos litúrgicos com um lançador de granadas nas mãos disparando no campo de batalha.”
O líder católico ucraniano falou sobre a sua experiência pessoal do que viu nos territórios anteriormente ocupados por soldados russos.
“É hoje óbvio para todos nós que o mal que chegou à nossa terra tem uma componente ideológica claro e um nome específico – o mundo russo”, disse ele.
A morte em números
O Arcebispo-mor de Kyiv citou estatísticas de organizações internacionais sobre a atual situação humanitária na Ucrânia. Desde o início da invasão russa, 422 crianças foram mortas e 805 crianças ficaram feridas. De acordo com a Missão de Monitorização dos Direitos Humanos da ONU, 6.221 civis foram mortos e 9.371 civis ficaram feridos. De acordo com o UNICEF na Ucrânia, das 3,2 milhões de crianças que foram deslocadas pela guerra, cerca de 1,6 milhão de crianças correm o risco de viver no limiar da fome e correm risco de insegurança alimentar. Os ataques à infraestrutura hídrica e a falta de energia deixaram cerca de 1,4 milhão de pessoas na Ucrânia sem acesso à água. Outros 4,6 milhões têm acesso limitado.
“Esses dados, mas antes de tudo a experiência pessoal da guerra que vivemos, mostram que não estamos a falar de uma guerra comum de um país contra outro, muito menos de uma operação militar, mas de um verdadeiro genocídio do povo ucraniano e dos terríveis crimes contra a humanidade cometidos por soldados russos”, afirmou Shevchuk.
“Se o mundo moderno não condenar e impedir o genocídio do povo ucraniano, amanhã teremos ainda mais vítimas, como aconteceu no passado com o nazismo e o comunismo”, afirmou o arcebispo. Além disso – continuou – a ideologia do mundo russo destrói os fundamentos não apenas do direito internacional e da coexistência pacífica entre os povos, mas também da confiança na fé cristã num mundo secularizado.
“Convido-vos a estudar e a elaborar uma avaliação intelectual das causas e consequências da guerra na Ucrânia”, disse ele à sua audiência académica, “com atenção especial à ideologia do ‘mundo russo’, que está a tornar-se um enorme desafio à credibilidade da mensagem cristã e da verdade objetiva, uma grave ameaça ao direito internacional e à convivência pacífica entre os povos. Deste modo, apelo a todos os académicos do mundo inteiro.”
Fonte:aleteia.org em 23 de outubro de 2022 (tradução nossa).
O arcebispo D. Ihor Isichenko, ao centro, junto ao Arcebispo-mor D. Sviatoslav Shevchuk, à direita, abençoam a primeira pedra de uma nova igreja, em 2018. Foto: Igreja Greco-Católica Ucraniana.
O arcebispo D. Ihor Isichenko é um bispo incomum. Ele é um intelectual formidável e um estudioso literário sério. Ele tem sido um líder entre os crentes ortodoxos ucranianos por mais de duas décadas. E há sete anos, ele iniciou um caminho que levou sua diocese ortodoxa à plena comunhão com a Igreja Católica, mesmo em meio a cismas e fraturas entre os crentes ortodoxos ucranianos e durante uma guerra que mudou drasticamente a vida em seu país.
O arcebispo Isichenko entrou em plena comunhão com a Igreja Greco-Católica Ucraniana no início deste ano; as paróquias da diocese que ele liderou agora fazem parte do Exarcado Católico Ucraniano de Kharkiv e da Arquieparquia de Kiev. Com o estatuto de arcebispo emérito, Isichenko liderará agora também uma filial da Universidade Católica Ucraniana.
A notável história do arcebispo começou décadas atrás, quando a Ucrânia declarou sua independência, a União Soviética caiu e o Patriarcado de Moscovo perdeu o monopólio da religião no país.
Em 1989, a Igreja Greco-Católica Ucraniana, que havia sido destituída de seu estatuto legal em 1946, foi legalmente autorizada a existir novamente na Ucrânia. A maior das 23 Igrejas Católicas Orientais em plena comunhão com Roma saiu das catacumbas.
Ao mesmo tempo, alguns crentes ortodoxos ucranianos começaram a pressionar para uma espécie de autocefalia – por uma Igreja Ortodoxa separada da jurisdição e supervisão do patriarca ortodoxo russo em Moscovo.
O movimento não foi homogéneo. Em vez disso, duas estruturas surgiram no início de 1990, que reivindicavam a jurisdição autocéfala no país: a Igreja Ortodoxa Autocéfala Ucraniana (IOAU) e a Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Kiev (IOU-PK).
Ambas as estruturas tinham problemas internos. Mas em meados da década de 1990, a IOU-PK ficou sob a liderança do Patriarca Filaret, que, durante a era soviética, serviu como exarca da Igreja Russa na Ucrânia e foi um dos principais candidatos ao trono do Patriarcado de Moscovo, em 1990.
Com Filaret no comando, a IOU-PK conseguiu estabilizar a sua estrutura. Com o tempo, começou a reivindicar o papel de igreja “estatal” ucraniana.
A IOAU teve menos sucesso na Ucrânia. Em alternativa, concentrou-se nas Igrejas Ortodoxas Ucranianas na diáspora, nos Estados Unidos e no Canadá, que ao longo do tempo se retiraram dos assuntos ucranianos. Muitas paróquias afastaram-se gradualmente da IOAU e entraram na jurisdição de Constantinopla.
No espaço de uma década, a IOAU começou a fragmentar-se. Desde o início dos anos 2000, existe como um conjunto de dioceses quase independentes, unidas apenas por um nome comum.
Em 2018, a recém-criada Igreja Ortodoxa da Ucrânia absorveu a maioria das igrejas, clérigos e recursos da IOU-PK e da IOAU. Sendo a maior estrutura que reivindicava a jurisdição ortodoxa autocéfala na Ucrânia, recebeu o reconhecimento de autocefalia da parte do Patriarca de Constantinopla, em 2019.
Mas nem todos seguiram esse caminho.
A diocese de Kharkiv-Poltava da IOAU, que cobria o Nordeste da Ucrânia, seguiria uma direção muito diferente.
A diocese tornou-se um importante centro para o movimento autocéfalo logo depois da sua fundação em 1992. A sua catedral de São Demétrio, em Kharkiv, tornou-se, ao longo dos anos, um centro cultural e educacional que ministrava formação teológica a futuros sacerdotes da IOAU.
E há sete anos, o arcebispo Isichenko e a diocese de Kharkiv-Poltava da IOAU entenderam que as divisões entre as fações ortodoxas ucranianas se tornaram muito profundas, que a unidade entre as igrejas ortodoxas da Ucrânia era improvável.
A diocese decidiu tornar-se católica – unir-se à Igreja Greco-Católica Ucraniana (IGCU).
A 1 de abril de 2015, uma assembleia eparquial declarou que “estava convencida da impossibilidade de unificação canónica com as Igrejas Ortodoxas Ucranianas na diáspora, rejeitou as formas não canónicas de unificação das Igrejas e acreditou na perspetiva da comunhão da Igreja ucraniana com as Igrejas da antiga e da nova Roma”.
Com um pedido formal, a diocese solicitou ao sínodo dos bispos da Igreja Greco-Católica Ucraniana “conselhos fraternos para alcançar a comunhão eucarística e a unidade administrativa da diocese Kharkiv-Poltava da Igreja Ortodoxa Autocéfala Ucraniana com a Igreja Greco-Católica Ucraniana”.
O processo para alcançar a unidade não foi fácil, levou quase sete anos. E, de acordo com o arcebispo Isichenko, que lidera a diocese desde 1993, nem todos na diocese seguiram o plano de unir a sua diocese local à Igreja Católica – algumas paróquias juntaram-se a outras comunhões ortodoxas.
“Devo dizer que a maioria dos padres ficaram assustados. Por vários motivos: seja pelo medo de perder o sustento do rebanho, pela falta de compreensão dos fiéis de tal passo, porque estavam sobrecarregados por vários tipos de mitos anticatólicos, ou pelo conservadorismo humano comum, o medo de algo novo”, disse ele ao The Pillar.
No entanto, “as congregações mais maduras apoiaram a ideia e juntaram-se então ao Exarcado de Kharkiv e à Arquidiocese de Kiev da IGCU”.
Embora as paróquias tenham sido totalmente incorporadas na estrutura da Igreja Católica Ucraniana nos últimos dois anos, a condição do arcebispo não fora esclarecida até esta primavera, depois o início da invasão em larga escala da Rússia na Ucrânia.
“Eu aposentei-me e agora sou arcebispo emérito, mantendo a minha autoridade como chefe do Collegium do Patriarca Mstyslav, que este ano adquire o estatuto de projeto da Universidade Católica Ucraniana em Kharkiv”, explicou o arcebispo.
O arcebispo D. Ihor Isichenko, à esquerda, junto ao arcebispo-mor D. Sviatoslav Shevchuk, ao centro, benzem a primeira pedra de uma nova igreja, em 2018. Foto: Igreja Greco-Católica Ucraniana.
Desde os seus primeiros dias, o arcebispo Isichenko foi uma figura um tanto atípica na ortodoxia ucraniana. Na época da sua tonsura monástica e ordenação sacerdotal, ele era professor de história da literatura na Universidade Estadual de Kharkiv.
Liderou uma diocese durante 27 anos, sem interromper as suas atividades académicas e docentes.
É autor de tratados académicos sobre a história da literatura medieval e barroca ucraniana, literatura ascética e a polémica ortodoxo-católica dos séculos XVI-XVII. Na verdade, ele é um dos maiores especialistas do mundo no seu campo de estudo.
Mas para explicar a decisão que a sua eparquia tomou – a decisão de tornar-se católica – o arcebispo olhou para a história mais recente.
Explicou que a sabedoria do seu plano não pode ser compreendida sem entender a experiência dos ortodoxos ucranianos durante o século XX e o colapso da União Soviética.
“A restauração da independência da Ucrânia também possibilitou a restauração da IOAU, cujas estruturas na época sobreviveram apenas na diáspora. Mas as igrejas nos Estados Unidos e no Canadá estavam bastante esgotadas, não podiam prestar assistência efetiva à Igreja reavivada na sua terra natal. Por outro lado, a comunidade ortodoxa autocéfala ucraniana precisava reconstruir a identidade da ortodoxia de Kiev, como era antes da sua subordinação a Moscovo no século XVII. A tarefa não era reviver, mas reconstruir”, explicou o arcebispo.
“Ainda assim, as fraquezas neste caminho foram imediatamente evidentes: uma base espiritual fraca, uma falta de durabilidade da tradição monástica, etc. A IOAU nunca foi capaz de criar um único mosteiro ou uma única escola académica significativa. Houve ainda vários cismas infames que a Igreja sofreu e – mais importante – esforços constantes de funcionários do Estado e de algumas forças da Igreja para formar uma Igreja ‘estatal’. Tudo isso conduziu à desilusão perante a perspetiva desse caminho.”
O arcebispo Isichenko explicou que, com o tempo, tornou-se evidente que uma tendência permanecia constante na Igreja Ortodoxa desde os tempos bizantinos, que era a tendência para a governamentalização da Igreja e a cooperação mais estreita entre a Igreja e o Estado.
“Servi como bispo governante da IOAU de 1993 a 2020, até à minha renúncia. Fiquei convencido de que a ideia da ortodoxia como alternativa ao catolicismo leva à formação de ‘Russkiy mirs – mundos russos’ em miniatura ou no sentido pleno da palavra.
“Seja na Sérvia ou na Rússia… Infelizmente, essa tendência existe também na Ucrânia. Tal particularismo bloqueia a natureza universal da Igreja, a sua catolicidade”.
O arcebispo disse ainda que a sua diocese começou a considerar a perspetiva de unidade com a Igreja Católica quando a iniciou a agressão russa contra a Ucrânia, em 2014, quando assistiu ao uso da Igreja Ortodoxa Russa para promover o imperialismo russo.
“O que está a ser feito com a Ortodoxia de Moscovo é o grande drama do mundo inteiro. A ideologia da ‘Russkiy mir’ mostra a todas as Igrejas Ortodoxas o perigo de inverter o sistema de prioridades – a perda da prioridade dos valores cristãos sobre as prioridades nacionais, estatais, políticas ou partidárias”, explicou ao The Pillar.
Os padres da ex-diocese de Kharkiv-Poltava da UAOC, que se uniram à Igreja Católica Ucraniana com suas congregações este ano, disseram ao The Pillar que se sentiam confiantes na sua opção, por causa da sua confiança no arcebispo Isichenko.
O Pe. Ihor Lytvyn, que liderou uma paróquia da IOAU em Poltava, explicou que, mesmo antes de 2015, as relações entre a IGCU e a sua diocese eram amigáveis. Os greco-católicos ensinavam frequentemente no Collegium do Patriarca Mstyslav, onde recebeu a sua formação teológica.
E na sua paróquia, os paroquianos sentiam uma afinidade com os católicos ucranianos, disse ele.
“Não foi surpresa para os meus paroquianos. Então, quando a nossa diocese estava em crise, eles solidarizaram-se com o caminho escolhido pelo arcebispo. A maioria votou pela transição, embora alguns se tenham afastado da paróquia. Pessoalmente, sempre estive convencido de que quem não é ortodoxo é um herege e que quem não é católico é cismático. Portanto, para mim, nunca houve oposição entre os conceitos de ‘ortodoxo’ e ‘católico’”, disse o Pe. Lytvyn.
O Pe. Oleh Bondaruk, que agora serve na arquidiocese de Kyiv da IGCU, foi ordenado sacerdote em 2016, quando a diocese de Kharkiv-Poltava já havia iniciado o seu diálogo de reunião com a UGCC. Em 2018, a sua paróquia optou por transferir-se para a Igreja Ortodoxa Ucraniana, mas Bondaruk decidiu tornar-se católico.
O Pe. Bodnaruk explicou ao The Pillar que o seu caminho era um pouco diferente do de outros clérigos da diocese, o que facilitou para se tornar um padre católico.
“A maioria dos padres que não migraram para a IGCU foram ordenados há vários anos. E eu acho que o limite mais difícil para uma pessoa ultrapassar na vida é o limite interconfessional. Eu fui ordenado no momento em que a diocese de Kharkiv-Poltava já havia iniciado o seu movimento de união com a IGCU. A minha escolha foi consciente.”
“Por outro lado, embora tenha sido batizado na Igreja Ortodoxa, cresci num ambiente católico romano, na região de Khmelnytskyi, e tenho muitos polacos na minha família. Frequentei uma igreja católica romana desde o oitavo ano. Até fui para um seminário católico romano por um ano. Mas depois mudei-me para Boyarka, perto de Kiev, e afastei-me um pouco da Igreja. Um dia pediram-me para dar uma boleia ao Arcebispo Ihor até Kaniv e o nosso conhecimento provocou-me um grande impacto. Então tornei-me um padre ortodoxo.”
O Pe. Viacheslav Trush, de Lozova, na região de Kharkiv, disse ao The Pillar que, perante uma questão tão difícil, ele e a sua congregação procuraram, acima de tudo, discernir a vontade de Deus a respeito do caminho que deveriam seguir.
“Um fator importante que influenciou a minha decisão foi também estudar e compreender a experiência da Igreja Católica, familiarizar-me com a sua doutrina, dogmas e história, tanto a nível global como na Ucrânia. Portanto, a nossa escolha baseou-se não apenas na confiança no nosso bispo, mas também no aprofundamento do nosso conhecimento da Igreja Católica”, explicou.
“Na paróquia, discutimos muitas questões e estudamos a história da Igreja. Tudo isso deu frutos. Temos um ambiente muito familiar na comunidade, onde o padre e os fiéis discutem tudo entre si, portanto não há segredos. Deste modo, quando anunciei a decisão do conselho diocesano, os fiéis encararam isso com confiança em mim e no arcebispo Ihor”.
Postal do séc. XIX da Igreja de São Demétrio, em Kharkiv. Foto: domínio público.
Ksenia Pidopryhora, da Igreja de São Demétrio em Kharkiv, foi forçada a deixar a cidade em março de 2022, por causa da guerra, vivendo agora em Lviv.
Ela contou ao The Pillar que sonhava em voltar para sua cidade natal e para a sua paróquia, à qual pertence desde os seis anos de idade. Pidopryhora explicou que começou por questionar a nova unidade da paróquia com Roma, mas agora é favorável, apoia a mudança.
“Em primeiro lugar, foi o conhecimento pessoal do clero e paroquianos da IGCU em Kharkiv, bem como a observação de figuras conhecidas que representam a IGCU no mundo, como o ex-líder da IGCU, Lubomyr Husar, de abençoada memória, ou o extraordinário intelectual, o Bispo Borys Gudziak. As suas palavras e ações correspondiam à minha ideia do que deveria ser a vida para os cristãos num mundo moderno, vida em unidade. Consequentemente, o desejo de fazer parte dessa unidade era natural”.
“Além disso, a própria IGCU, como instituição, tinha – e tem – uma reputação excecionalmente positiva de consistência e unidade, em contraste com a comunidade da Igreja Ortodoxa na Ucrânia, cujas divisões e brigas vivenciámos como paróquia. Também a transparência em responder a quaisquer perguntas do clero da nossa diocese e a própria possibilidade de ver, conversar e fazer perguntas durante esse processo contribuiu para a consciencialização da conveniência e lógica dessa ‘transição’”, explicou Pidopryhora.
Apesar da sua tradição litúrgica bizantina comum, existem algumas diferenças litúrgicas entre a Igreja Greco-Católica Ucraniana e a Ortodoxia Ucraniana. Pidopryhora confessou estar grata pelo facto de as paróquias da antiga diocese de Kharkiv-Poltava manterem certos costumes específicos de culto, mesmo depois de se terem tornado católicas.
“Felizmente, a ausência de alterações na ordem do culto e o direito de observar o calendário religioso como era antes da ‘transição’ ajudaram os paroquianos da nossa igreja a integrarem-se tranquilamente na vida da Igreja, como membros plenos da IGCU”, explicou ela.
O bispo D. Vasyl Tuchapets, exarca da IGCU em Kharkiv, disse ao The Pillar que as diferenças litúrgicas entre as paróquias da IGCU e as antigas comunidades da diocese de Kharkiv-Poltava da IOAU não eram fundamentais, diziam respeito a nuances rituais.
Mas em todos os outros aspetos, as comunidades estão totalmente integradas na vida do exarcado. Os seus pastores participam em retiros e encontros conjuntos, cursos de formação do exarcado e outros projetos da Igreja.
Por sua vez, o Pe. Trush disse que a “integração” foi uma experiência positiva, para ele e para a sua paróquia.
Anteriormente, a sua vida paroquial parecia isolada – cercada pelas divisões e políticas das igrejas ortodoxas na Ucrânia. Mas agora, disse ele, as coisas mudaram.
“Agora sentimos que pertencemos a uma comunidade global – a Igreja Greco-Católica e a Igreja Católica espalhadas pelo mundo, há um sentimento de apoio. Para mim pessoalmente, como padre, isso é muito importante”, concluiu o sacerdote.
Fonte: The Pillar inpillarcatholic.com em 6 de setembro de 2022 (tradução nossa).
Entre os belas pinturas que preenchem os tetos e as paredes da Igreja de São Josafá, em Chervonograd, região de Lviv, na Ucrânia, encontra-se uma impressionante representação mural do Juízo Final, na qual, uma figura semelhante a Vladimir Putin personifica o último dos flagelos dos cristãos ucranianos.
A personagem em causa, atormentada pelas penas do Inferno, surge em grande destaque, juntamente com outros líderes políticos e religiosos de várias épocas históricas, assim como os símbolos do nazismo e do comunismo soviético.
A admiração e até alguma idolatria que a figura sinistra de Vladimir Putin suscita entre em alguns setores conservadores menos informados da sociedade ocidental contrastam fortemente com o pavor e a repugnância que sentem os nossos irmãos católicos da Europa do Leste. Um sentimento bastante anterior à atual fase de agressão russa iniciada a 24 de fevereiro de 2022.
No oitavo consistório presidido por Francisco, que teve lugar na tarde deste sábado, 27 de agosto, o grande ausente nas escolhas papais foi, mais uma vez, D. Sviatoslav Shevchuck, o líder da maior igreja católica oriental. Este facto, como refere o Pe. Raymond J. de Souza, no National Catholic Register, representa um insulto à Ucrânia, numa altura em que o povo ucraniano é vítima de uma sangrenta agressão externa, ordenada pelo ditador assassino Vladimir Putin, com o imprimaturdo líder da cismática Igreja Ortodoxa Russa.
Desde o início da agressão russa, o líder da Igreja Greco-Católica Ucraniana tem exercido uma ação pastoral muito intensa, com mensagens videográficas diárias de apoio ao povo ucraniano, em que condena, de forma clara e direta, os crimes dos invasores no seu país.
O arcebispo-mor D. Sviatoslav Shevchuck, nascido nos horrores do comunismo soviético, especialista em teologia moral e fluente em várias línguas, seria um forte candidato ao trono de Pedro num futuro conclave. No entanto, nem o seu passado pastoral comum com cardeal D. Bergoglio na Argentina foi suficiente para convencer Francisco nos sucessivos consistórios, em que tem demonstrado maior preferência por bispos progressistas e até homossexualistas.
A segunda maior das igrejas católicas continuará, deste modo, sem qualquer representação no colégio cardinalício, como tem acontecido desde 2017, após o falecimento do cardeal D. Lubomyr Husar. É desta forma que o Vaticano reconhece séculos de fidelidade dos católicos ucranianos confirmada pelo sangue de tantos mártires.
A Rússia e a liderança da igreja oficial do regime putinista agradem…
Sviatoslav Shevchuk: “Isso na Ucrânia não é um conflito, é um crime contra a humanidade, há um criminoso cruel e há uma vítima inocente”. A ideologia do “mundo russo”, o papel da Igreja Ortodoxa em Moscovo, a destruição total nas aldeias e cidades: “O mundo que existia antes de 24 de fevereiro não existe mais. Nem Rússia, nem Ucrânia, nem a Europa Ocidental “
Alguns dizem que está a ocorrer um conflito na Ucrânia, os media ocidentais falam do conflito russo-ucraniano. Não, na Ucrânia não há conflito, porque o conflito sempre evoca um paradigma simétrico: dois grupos, um contra o outro, cada um com as suas próprias razões. Isso não é a realidade que se vê na Ucrânia, não há duas razões e não há verdade no meio. Aqui há um criminoso, aquele que ataca. E aqui está a sua vítima”. Sua Beatitude Sviatoslav Shevchuk, líder e pai da Igreja Greco-Católica Ucraniana, da qual também é arcebispo-mor, é claro na sua avaliação da tragédia que está a ocorrer na Europa Oriental. Nesta entrevista exclusiva concedida ao Foglio, Shevchuk descreve cinco meses de guerra, o que vê todos os dias com os seus próprios olhos e denuncia certos “mal-entendidos” ocidentais, a tendência de encontrar alguma boa razão (ou pelo menos explicável) na agressão ordenada por Moscovo.
Sua Beatitude, no Ocidente muitas vezes temos dificuldade em entender o motivo desta guerra. Talvez estejamos a usar critérios errados, talvez não entendamos completamente a ideologia que levou Vladimir Putin a atacar a Ucrânia. Fala-se da “ideologia do mundo russo”. Qual é a sua opinião sobre o assunto?
“Há muitas opiniões e debates sobre os motivos por que a Rússia atacou a Ucrânia em grande escala, trazendo destruição, sofrimento e morte ao nosso país. Não gostaria de entrar em detalhes nestes temas sofisticados e incompreensíveis para o nosso povo, mas posso falar como testemunha ocular de tudo o que vi pessoalmente, mas sobretudo como pastor das almas em sofrimento. A Ucrânia é vítima da agressão russa desde 2014, mas desde 24 de fevereiro, nós, ucranianos, entendemos que não se trata apenas de uma guerra de um país contra outro, muito menos de uma simples “operação militar”. Visitando as cidades ucranianas que foram ocupadas pelo exército russo e depois libertadas, vi a tragédia das valas comuns de civis, ouvi vários testemunhos de vítimas de violação perpetrados por soldados russos, ficamos abalados com o testemunho excruciante dos cadáveres executados e abandonados nas ruas das nossas cidades. Infelizmente, estes não são casos únicos, vemos as ações sistemáticas do exército de Putin ao povo inocente da Ucrânia. Foram encontradas valas comuns em Bucha, Mariupol, Makariv e provavelmente haverá outras; houve muitos casos de tortura em civis, incluindo crianças. Já morreram cerca de 300 menores às mãos das tropas russas. Basta pensar que perto da velha cidade de Chernihiv, considerada pela Igreja Ortodoxa como património histórico, o exército russo construiu uma câmara de tortura! Torturaram pessoas das aldeias de Yahidne e Lukashivka no edifício da igreja. Muitos corpos mutilados foram encontrados à volta da igreja. Hoje é cada vez mais evidente, pelo menos para nós na Ucrânia, que a guerra russa contra a Ucrânia tem uma base ideológica clara chamada ideologia do mundo russo.”
Pode explicar-nos em que consiste?
“Para responder a essa pergunta, gostaria de me referir à contribuição de Timothy Snyder, o conhecido estudioso da Shoah no território da antiga União Soviética. Ele mesmo reagiu imediatamente à publicação, na página russa Ria Novosti, de um documento que explicava as razões e ordens dadas aos soldados russos para a sua missão na Ucrânia. Uma declaração intitulada ‘O que a Rússia deve fazer com a Ucrânia’, redigida por Timofey Sergejtsev, explica o que Moscovo entende por desnazificação, um dos objetivos da guerra na Ucrânia proclamado por Putin. Convido a comunidade europeia a ler atentamente esse texto para compreender em que consiste a ideologia do mundo russo. Timothy Snyder apelidou-o de manual do genocídio russo. Ele escreve: o manual russo é um dos documentos mais abertamente genocidas que já vi. Além disso, gostaria de salientar que muitos importantes teólogos das Igrejas Ortodoxas de todo o mundo condenaram a ideologia do‘mundo russo’ como uma heresia totalitária do fundamentalismo religioso etnofilético. E um número importante de políticos relevantes identifica-a como uma forma de nacionalismo radical que pretende espalhar-se pelo mundo. A ideologia do ‘mundo russo’ nega ao povo ucraniano o direito de existir, como a ideologia da Alemanha nazista fez com o povo judeu. Desta forma, propõe-se uma nova ideologia autoritária que, nascida na Rússia graças à propaganda massiva, encontra – mesmo que pareça estranho – seguidores no Ocidente. Posso apenas testemunhar que os invasores estão a cometer, literalmente, crimes de guerra conforme prescrito no texto ‘O que a Rússia deve fazer‘. Para a população civil, tudo isso representa uma crueldade sem precedentes”.
Recorre-se a justificações políticas e geopolíticas para explicar o que aconteceu, contando os tanques russos que entraram na sua terra natal. Mas há também, digamos, um elemento cultural que levou à guerra? Por que razão a Ucrânia é tão assustadora para Moscovo?
“A história do povo ucraniano é uma história que faz parte da história europeia, somos um povo europeu que na sua história moderna reafirmou a sua escolha a favor dos princípios e ideais da comunidade europeia. Infelizmente, na Rússia, hoje podemos ver uma síntese entre a mentalidade soviética e a imperial. A Ucrânia é hoje vítima dessa reconstrução perversa das fronteiras da ‘grande Rússia’. Tentam sempre apresentar a sociedade ucraniana como aquela que está sob a influência da imoralidade ocidental. Precisamente daí surge uma intolerância para com tudo ‘que não é nosso’, provocando e justificando o uso da violência para eliminar todos os ‘contaminados’. Uma imagem desse ‘Ocidente coletivo’ que deve ser combatido está hoje a ser projetada na Ucrânia. Para evocar uma memória histórica desse inimigo para fazer a guerra usa-se a palavra ‘nazismo’, que perdeu todo o sentido original, sendo hoje geralmente aplicada a todas as coisas ocidentais’ identificadas na identidade de um povo. Por isso, um ucraniano é referido como um herege nazi. É cada vez mais evidente que a Rússia entrou em conflito cultural não apenas com a Ucrânia, mas com tudo o que definimos como civilização ocidental. O processo de zombificação da população russa pelo regime do Kremlin produziu um tipo de sociedade antropológica muito perigosa. Repare como as valas comuns na Ucrânia se tornam motivo de alegria para muitas pessoas na Rússia. Sem compaixão, sem raciocínio sobre as razões desta guerra absurda. Infelizmente, até mesmo ao mais alto nível da Igreja Ortodoxa Russa. Assistimos de facto a uma justificação cristã da guerra russa contra a Ucrânia e à glorificação dos crimes de guerra e da ideologia da violência.”
Vimos os corpos nas valas comuns com as mãos amarradas nas costas. Os cadáveres nas ruas. Acha que há razões para se falar de genocídio do povo ucraniano?
“Não encontro outras explicações. E as razões proclamadas pelo presidente russo não têm fundamento. O verdadeiro objetivo da agressão russa é a aniquilação do povo ucraniano. Isso é confirmado tanto pelos discursos ideológicos do próprio Putin, que tantas vezes fazem referência à história ucraniana, quanto pelos crimes de guerra cometidos pelos seus soldados na nossa terra. Efetivamente, é difícil considerar isto apenas uma guerra. Desde o primeiro dia da invasão russa à Ucrânia, temos visto crimes de guerra contínuos que não param nem de dia nem de noite. Alguns dizem que há um conflito a acontecer na Ucrânia. De facto, vejo que, ultimamente, os media ocidentais falam do conflito russo-ucraniano. Não há conflito na Ucrânia. Porque o conflito sempre evoca um paradigma simétrico de discurso, conflito significa que existem dois grupos, cada um deles tem a sua própria razão e estão em conflito. E quem busca a verdade ou quer mediar o conflito sempre escuta um lado, o outro lado, e intuitivamente diz que a verdade está no meio. Isso significaria encontrar uma solução para o conflito. Mas, na verdade, não existe esse tipo de realidade na Ucrânia. Não existem duas razões e não existe uma verdade média, mas existe um criminoso, aquele que ataca, e existe a sua vítima. Não se pode dizer que haja algum tipo de conflito de interesses porque, nesse caso, colocaríamos no mesmo patamar o criminoso e a sua vítima. Portanto, também neste caso, como Igreja, devemos declarar ‘tolerância zero’ para com o criminoso. Acho que precisamos de parar de falar do conflito para passarmos a falar do crime de guerra na Ucrânia. Devemos parar de tentar defender os interesses do agressor e mediar os interesses do agressor e do agredido porque isso, de facto, não corresponde à realidade e à verdade, a verdade objetiva dos factos ocorridos. Tolerância zero para com o uso da violência… Se o interesse de um Estado provoca a guerra e está a condenar à morte um povo de mais de 40 milhões, então não é mais interesse, é crime. As razões que podem explicar ou justificar essa agressão não podem ser aceites pela civilização de hoje. Na Ucrânia está a ser cometido um crime contra a humanidade, existe um criminoso cruel e existe uma vítima inocente. Por isso, é também importante encontrar os termos certos para descrever tudo o que acontece na Ucrânia, uma vez que a palavra ‘guerra’, com o significado que temos em mente, não é mais a que pode descrever esta tragédia. Se alguém tiver alguma dúvida, convido-o a vir à Ucrânia e ver por si mesmo.”
O seu povo conheceu imensas tragédias, penso apenas em Holodomor dos anos 30, também descrito por Vasiliy Grossman, que falou da dor das mães obrigadas a ver os seus filhos morrer de fome. No entanto, os ucranianos sempre se levantaram. Qual é a força do seu povo?
“Acho que não podemos explicar numa só frase em que consiste essa força. De acordo o meu entendimento pessoal e de acordo com a experiência de como se vive a guerra nessas condições, vem-me à mente o nosso filósofo Hryhoriy Skovoroda (1722-1794), que disse – quando a rainha imperatriz Catarina o quis perto de si – que ‘a flauta e as ovelhas são mais preciosas para mim do que a coroa do rei’. Graças à sua filosofia, ele foi capaz de compreender o modo de vida do nosso povo. Ou seja, são as pessoas que acreditam na ressurreição que, através da sua cultura e filosofia nacional, veem que a vida humana é maior do que somente a vida terrena. No túmulo de Skovoroda estão as suas palavras: ‘O mundo queria me agarrar, mas não conseguiu’. Apenas isso, a fé na ressurreição e o amor à liberdade foram sempre a força do nosso povo, não para renunciar, mas para se levantar e seguir em frente. Há outro ditado popular: ‘Pensavam que seríamos enterrados para sempre, mas acabámos por ser uma semente que dá vida nova’. Talvez, mesmo agora que nosso povo está a lutar, ele está a levantar-se depois de tantas ondas de genocídio precisamente porque o Senhor nos faz ressuscitar.”
Diante de um Ocidente que muitas vezes se preocupa em discutir sobre todas as fronteiras, tréguas e mediações, o que tem vontade de dizer como pastor?
“Acho que temos que recomeçar, mas respeitando a dor da vítima. Ouçam o clamor das pessoas que estão condenadas à morte. Isso levar-nos-á a entender como devemos hoje construir a convivência entre povos e nações no terceiro milénio, porque sabemos que todas as construções mentais humanas são relativas. Se partirmos do bem-estar ou dos interesses das potências deste mundo, e se os interesses económicos prevalecerem sobre a vida humana, sobre o seu preço inexorável, então, como humanidade, estaremos acabados. Mas se partirmos do respeito pela vida humana, fazendo dela uma estratégia, uma política, até uma pastoral, começaremos pela preocupação de proteger os mais fracos, então poderemos sobreviver e reconstruir uma comunidade, mesmo a nível internacional, mais justa do que a que temos agora.”
O que viu ao visitar as aldeias devastadas por estes meses de guerra? Que emoções sentiu diante do massacre?
“A guerra não é um jogo. Parece-me que, às vezes, no Ocidente, com a palavra ‘guerra’ em mente, estão a ser feitos jogos eletrónicos. Infelizmente, aqueles que planeiam guerras nunca souberam o que realmente é uma guerra. Mas vendo a realidade da guerra na Ucrânia, estamos a lidar com a destruição total. Cidades inteiras e aldeias tornaram-se cidades e aldeias fantasmas. Também as valas comuns sem fim. E surge a pergunta: podemos viver nessas condições? O mundo quer sobreviver ou planeia a guerra? E outra pergunta: sabemos que um dia de guerra contra a Rússia custa quatrocentos milhões de dólares. Somente um dia. Então, quem é aquele que investe na morte com a mente diabólica? E se com esse dinheiro construíssemos, salvássemos vidas, não faríamos o futuro melhor na própria Rússia? E se esse dinheiro fosse investido justamente para melhorar as condições de vida dos milhões de cidadãos daquele país? Em vez de gastar tão facilmente para matar os outros… Isso significa que a guerra é sempre um crime, é sempre uma loucura, uma loucura. Quanto mais difícil, mais evidente isso se torna. A guerra travada na Ucrânia é um crime contra a humanidade.”
Você acha que quando a guerra acabar, as relações entre as Igrejas presentes na Ucrânia também mudarão?
“Até agora todos nós mudámos. Talvez nem todos tenham entendido ainda que o mundo que existia antes de 24 de fevereiro deste ano não existe mais. Nem a Rússia, nem a Ucrânia, nem a Europa Ocidental, nem os outros países. Num clique, mudámos para sempre. E se as relações entre os homens mudarem, obviamente as relações entre o homem e a sociedade, o homem e qualquer comunidade mudarão, e as relações entre as Igrejas também mudarão. Se falamos das relações entre as Igrejas na Ucrânia, devo dizer que essas relações melhoraram muito, porque estamos unidos como nunca, precisamente em nome da defesa da vida humana. Vemos que todos os particularismos, mesmo todos os interesses particulares egoístas (que às vezes até as Igrejas cultivam) são agora colocados em último lugar porque a questão existencial – como sobreviver junto com nosso povo – agora está em primeiro. Por isso colaboramos. Talvez depois venha também o nível ecuménico, doutrinário, uma reflexão que partirá dessa experiência existencial, mas quando se trata de organizar, por exemplo, um corredor verde para evacuar e salvar a vida de pessoas que estão em perigo iminente de morte, então todos se unem: católicos, ortodoxos, protestantes, muçulmanos e judeus. Colaboram precisamente para se salvar e para salvar os outros.”
Diante das valas comuns, todos rezam juntos…
“Exatamente, porque ali temos todos os nossos paroquianos, os membros das nossas comunidades, os familiares. Esta guerra revela, antes de tudo, que somos todos humanos e só depois pertencemos a uma certa religião. Humanidade, a natureza humana é a base que nos une. Quanto mais humanos nos tornarmos, mais unidos seremos. Mas se cairmos nessa armadilha da desumanização, serão sempre encontradas novas divisões.”
Fonte:ilfoglio.it em 26 de julho de 2022 (tradução nossa).
“Vencer o mal com o bem!” (Romanos 12:21) Ninguém tem mais amor do que quem dá a vida pelos seus amigos. (João 15:13).
Amados em Cristo!
Pelo quinto mês, uma guerra brutal e em larga escala está a ser travada em solo ucraniano. Veio em 2014 sem ser convidada, insidiosa e, a partir de 24 de fevereiro, o inimigo deixou cair todas as suas máscaras anteriores e para abertamente destruir a Ucrânia.
O exército russo mata inocentes e viola os indefesos, sequestra crianças e deporta os habitantes dos territórios ocupados, tortura prisioneiros e faz passar fome os sitiados, rouba os cereais que plantamos e saqueia nossas casas, anexa terras e destrói empreendimentos confiscados, incendeia cidades pacíficas e aterroriza moradores. A liderança russa procura destruir o Estado Ucraniano e despojar-nos do nosso nome. “Os teus olhos e o teu coração apenas procuram satisfazer a tua cobiça, derramar sangue inocente e exercer a opressão e a violência. (Jr 22:17). Como no século XX, o território da nossa Pátria transformou-se novamente em “terras sangrentas”.
Condenamos veementemente esta guerra! Porque “o Senhor abomina a conduta do ímpio” (Pv 15:9). O mundo tem a obrigação moral de reverter essa agressão contra a Ucrânia!
As intenções do agressor são claramente genocidas: desde os primeiros dias, as táticas de guerra mostram que ele não está a lutar contra o exército, mas contra o povo. A Rússia está a tentar satisfazer os seus apetites imperiais: a sua liderança considera a Ucrânia uma colónia, um não-estado que não merece um lugar no mapa político do mundo. Para ser grande, um império precisa de colónias – terras escravizadas, conquistadas, recursos, escravos. A lógica genocida colonial dita estratégias de terra queimada, que não poupam nada nem ninguém. Não há nada sagrado – nem o idoso, nem a mulher grávida, nem o bebé na maternidade, nem as crianças escondidas no teatro. Não reconhece valor a um monumento histórico ou a uma cidade industrial, a um edifício residencial com centenas de moradores ou a hectares de terra com cereais maduros. Tudo e todos podem ser destruídos “por causa das ações operacionais.” Todos os dias, como se estivesse em transe, o mundo inteiro contempla a barbárie, a decadência moral e a vilania dos agressores. A Ucrânia, por outro lado, defende-se, porque o seu povo, de uma vez por todas, recusou tornar-se escravo, tentando simplesmente viver em liberdade a vida e a dignidade que Deus lhe deu. Ninguém ouse a tirar-lhe isso – assim diz o Senhor.
A Ucrânia não quer conquistar ou humilhar a Rússia. A Ucrânia quer que o vizinho agressor – com um território 28 vezes maior, que se estende por 11 fusos horários e uma população quase quatro vezes maior – pare com as suas tentativas seculares de escravizar e destruir a Ucrânia, libertando-se da patologia do imperialismo e tornando-se um estado de direito que respeita os direitos dos outros. O ladrão tem de sair de nossa casa! A Igreja Ortodoxa Russa deve parar de promover ideologicamente a heresia do “mundo russo”! Num momento em que várias Igrejas cristãs repensam com arrependimento o seu papel histórico na política do colonialismo e na prática da escravidão, a Igreja Ortodoxa Russa está a levar os seus fiéis às trevas morais da violência, agressão e crimes de guerra. O sal perdeu o sabor e a luz deixou de brilhar (cf. Mt. 5:13-16).
A guerra do invasor causou uma catástrofe humanitária e ecológica, uma crise económica e demográfica no nosso país. Em cinco meses, cerca de nove milhões de residentes deixaram a Ucrânia, em particular, dois milhões de adultos e crianças foram deportados à força para a Rússia pelo invasor e cerca de sete milhões foram forçados deslocar-se internamente, 15,6 milhões carecem de apoio humanitário. Milhares de famílias estão separadas por quilómetros e fronteiras. O número de viúvas e órfãos aumenta diariamente. O agressor está a fazer de tudo para tornar nossa Pátria um território inabitável, cidades e regiões estão desertas. A escala dessa enorme alteração demográfica está para além da nossa compreensão, mas sentiremos seus efeitos por décadas.
A tragédia da guerra feriu direta e profundamente a nossa Igreja. Algumas das nossas paróquias foram ocupadas e saqueadas. Afinal, ao longo dos séculos passados, cada vez que a bota do invasor russo – seja ele czarista, soviético ou putinista – pisou em nossa terra, a Igreja Greco-Católica Ucraniana foi perseguida e destruída. No entanto, em todas as vezes, dando testemunho da sua fé e mostrando perseverança na perseguição, pela vontade do Senhor, ela foi restaurada com uma nova força. Acreditamos e sabemos que desta vez também será assim. Expressamos solidariedade e apoio aos nossos bispos, sacerdotes, pessoas consagradas e leigos que estão na linha da frente e nos territórios ocupados, ou foram forçados a deixar suas casas e paróquias. Acreditamos que regressarão às suas casas, e as nossas paróquias irão reviver e desenvolver-se. Expressamos palavras de fraternidade e solidariedade aos católicos romanos, ortodoxos, protestantes, judeus e muçulmanos da Ucrânia que estão sob ameaça mortal, não menos do que nós. Permaneceremos juntos!
A coragem e a unidade do nosso povo na defesa de sua independência foram surpreendentes até mesmo para muitos ucranianos, para não mencionar os outros países. Heroica resistência militar, dedicação e sacrifício de voluntários, unidade e unanimidade das comunidades religiosas, que se tornaram importantes centros de ajuda mútua e amor ao próximo, provam que tal povo não pode ser escravizado.
Eles queriam enterrar-nos, mas não sabiam que somos sementes. Este ditado tornou-se um slogan da indomabilidade, resiliência e força de resistência às dificuldades que os ucranianos estão a demonstrar. Ecoa o ditado do escritor cristão Tertuliano: “O sangue dos mártires é a semente da Igreja”. Nós inclinamos nossas cabeças perante todos aqueles que se sacrificaram e estão a sacrificar-se para proteger os inocentes, para defender a verdade, para defender nossa sagrada dignidade humana dada por Deus.
Um sacrifício tremendo e doloroso, porque é autêntico e pascal, gera frutos abundantes e vivificantes. No meio da morte que o inimigo semeia por toda parte com todo o seu arsenal de malícia e ódio, brotam rebentos de força e nobreza imensuráveis. Deus acendeu as almas dos ucranianos com fé na vitória da verdade de Deus. Numa era de ditadura relativista, os ucranianos claramente chamam as coisas pelo nome: há verdade, bondade, princípios e valores pelos quais se deve viver e pelos quais se pode até morrer, assim como há mentiras e maldade insidiosa. A Ucrânia uniu a Europa, curou as suas fissuras e inspirou pessoas de boa vontade em todo o mundo. As Sagradas Escrituras ganham vida diante dos olhos da humanidade e o Senhor da história manifesta um milagre: David confronta Golias. Soldados ucranianos que protegem do ataque as suas cidades natais, a vida de familiares e entes queridos, a liberdade e a dignidade do povo, juntamente com David dizem: “Tu vens a mim com uma espada, uma lança e um dardo, mas eu irei a ti em nome do Senhor dos exércitos… a quem desafiaste” (1 Sam. 17:45). Expressamos o nosso sincero reconhecimento a todos aqueles que abnegadamente defendem a verdade e a justiça.
Agradecemos aos sacerdotes-capelães que, arriscando suas vidas, estão ao lado de nossos defensores, rezam com eles, levam Cristo até eles e prestam apoio humanitário.
Através do seu sofrimento e luta desesperada pela existência, a Ucrânia tornou-se o epicentro das mudanças globais. Muitas pessoas e nações estão a perder os seus antolhos: torna-se claro que os recursos baratos não valem o custo de capacitar ditadores; que o sistema de segurança mundial está enfraquecido e a paz ameaçada se, em nome da prosperidade, não for dada atenção aos princípios divinos e o comportamento dos violadores for ignorado; que nenhum homem ou país é uma ilha distante, mas que toda a humanidade está interligada em diferentes níveis, e se a injustiça é feita a um país, os outros não podem ficar indiferentes. “Nunca mais” passa de slogan histórico a um imperativo moral.
Pela vontade de Deus, a verdade tornou-se clara e a mentira desapareceu, porque “nenhuma mentira é da verdade” (1 João 2:21). O próprio facto da agressão não provocada da Rússia, reforçada pelos crimes de guerra dos invasores russos, causou uma enorme onda de apoio aos ucranianos no mundo. O nível sem precedentes de assistência humanitária aos refugiados e deslocados temporários é um testemunho autêntico do amor cristão: “Era refugiado e vós me recebestes; Estava em aflição e vós viestes em meu auxílio” (cf. Mt. 25:35-36). Por esta hospitalidade e generosidade de vários povos, Igrejas, bispos, sacerdotes, monges e freiras, fiéis leigos e pessoas de boa vontade em vários países de vários continentes, expressamos a nossa profunda gratidão. Também expressamos os nossos sinceros agradecimentos aos conventos, ordens religiosas e congregações, na Ucrânia e no exterior, que acolheram milhares de pessoas deslocadas à força e partilham com elas tudo o que têm. Como nos tempos das primeiras comunidades cristãs, a abundância alguns superou a necessidade de outros (cf. 2 Cor. 8:14).
Nos dias de hoje, perguntamo-nos: o que nos dá força para lutar e resistir a um inimigo que nos supera dez vezes em poder militar? Se reformularmos a pergunta para “quem” nos dá força, então a resposta torna-se óbvia. Deus dá-nos força porque Ele é o Senhor dos poderes. Porquê? Porque nós amamos! O poder dos ucranianos é o poder do amor. Os nossos soldados são guiados pelo princípio, não de odiar os outros, mas de amar os próprios – filhos, entes queridos, pais, amigos, terra, ruas onde nasceram, amanheceres, neblinas… O amor manifesta-se no trabalho incansável dos voluntários, nas generosas doações de milhões, na sincera oração silenciosa. E através deste amor já vencemos.
Este terreno moral elevado deve ser preservado. Só venceremos se continuarmos a amar, se não desviarmos nem um pingo da fórmula bíblica para esta vitória: “Sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama permanece na morte” (1 João 3:14). O amor gera heróis mas o ódio gera criminosos. A crueldade da guerra desumaniza e, por isso, nós, como nação que se defende e como Igreja que une o povo na família de Cristo, devemos fazer todos os esforços para preservar a nossa dignidade e humanidade, sem nunca nos rebaixarmos à desumanidade e atrocidades do agressor. Protejamos do mal os corações dos nossos soldados, para que permaneçam guerreiros da luz e do bem! Vamos proteger os nossos próprios corações! Transformemos a nossa raiva e o nosso ressentimento em coragem, indomabilidade, verdadeira sabedoria e na vitória da verdade de Deus. São Paulo exorta-nos: “Não te deixes vencer pelo mal, mas vence o mal com o bem” (Rm 12,21).
Como ser Igreja?
Os princípios que adotamos na Carta Pastoral de 2021, “A esperança a que o Senhor nos chama”, refletindo sobre o nosso futuro e estabelecendo as prioridades pastorais da nossa Igreja para a próxima década, vêm à superfície e adquirem um significado particular perante o cenário da guerra. Aproveitando a experiência da pandemia, que afetou profundamente os vínculos e as estruturas sociais, enfatizamos a necessidade de conversão pastoral, de construção de redes de comunhão, de cura de feridas e de proximidade e atenção prática aos pobres e marginalizados. Com base na experiência das nossas comunidades, buscamos descrever uma metodologia e a guerra criou um contexto em que cada um de nós pode refletir mais profundamente sobre o que essa metodologia e esses princípios significam e a que conclusões práticas e ações eles levam.
Nossa conversão pastoral significará estar perto de nossos fiéis – no sofrimento, na dor, nas provações, na morte. “Se um membro sofre, todos sofrem juntamente” (1 Coríntios 12:26). A expressão “cheirar a ovelha” retorna ao seu significado cristão original e radical – dar a vida pelo curral confiado. A guerra leva-nos a continuar construindo laços de solidariedade entre pessoas, paróquias e países com novo fervor e resiliência; feridas novas, até agora inéditas, exigirão de todos a oração persistente e o trabalho generoso, para que, com o óleo da misericórdia divina e da compaixão humana, sejam curadas e transformadas em fontes de esperança; enquanto ajudar os pobres e marginalizados exigirá de nós novas abordagens e criatividade no amor.
Em outubro de 2021, na abertura do Sínodo dos Bispos da Igreja Católica, o Papa Francisco enfatizou que somos chamados à unidade, à comunhão, à fraternidade, que aparecem justamente quando percebemos que somos todos igualmente abraçados pelo amor de Deus. Por outras palavras, a nossa unidade ou solidariedade não é uma construção social, mas a nossa identidade em resposta ao amor de Deus. “Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” (1 Jo. 4:8).
A guerra ensina-nos de forma radical, através da dor, dos sacrifícios e do sofrimento que traz a cada dia, a ser a Igreja de Cristo: acreditar inabalavelmente no poder do bem e viver com amor ativo. “Pois quem não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1 Jo 4:20).
Somos chamados a ser uma Igreja próxima
Na Ucrânia e no exterior, as nossas paróquias criam redes de oração e apoio. Junto com as orações pela paz, resgate, feridos e caídos, ressoam apelos para recolha de doações, encontrar voluntários ou embalar e desembalar recursos materiais. O trabalho difícil e meticuloso continua. Através do testemunho da Igreja e dos nossos fiéis em vários países do mundo, a verdade está a ser difundida e cresce a consciência do que as pessoas na Ucrânia estão a viver. Uma igreja que está próxima do sofrimento, da dor humana, está viva e não se tornará um museu.
Somos chamados a ser uma Igreja que escuta
Capelães e padres, representantes do monaquismo ou fiéis leigos, que trabalharam com aqueles que sobreviveram à ocupação, bombardeio, mutilação ou perda de familiares, notam que as palavras de consolo mais importantes são “eu estou contigo!” Contacto, atenção, humanidade, oração – estas são as principais ferramentas para o cuidado pastoral em tempo de guerra. Ouvir o outro, ouvir a sua história, aceitar a sua dor – nas nossas circunstâncias, isso é o que significa ser Igreja.
Somos chamados a ser uma Igreja que cura as feridas
Durante a sua missão terrena, Cristo curou os cegos, aleijados, possessos, a fim de finalmente curar a humanidade e todo ser humano da doença, da morte e do pecado. Cristo entregou à Igreja o seu ministério de curar feridas, de reabilitar o outro. Em tempo de guerra, a cura de feridas espirituais, lidar com traumas e angústias, é uma das tarefas primordiais da Igreja e dos seus ministros. “Carregais os fardos uns dos outros e assim cumprireis a lei de Cristo” (Gl 6:2). As feridas e traumas das pessoas a quem somos chamados a servir são, na sua maioria, visíveis e evidentes, mas às vezes estão escondidos ou envoltos em bandagens de raiva, medo ou desapego fingido.
A Igreja, ela mesma ferida pelo sofrimento e pela dor do desastre da guerra, é chamada a levar a todos os necessitados e feridos a graça medicinal do Espírito Santo nos Santos Mistérios (Sacramentos) e no acompanhamento espiritual, o remédio da consolação e amor misericordioso. Nas feridas humanas reconhecemos as feridas do nosso Salvador e, ao tocar o sofrimento humano, redescobrimos o contacto com Cristo ressuscitado, cujas feridas se tornaram um sinal da vitória final de Deus sobre as forças obscuras e destrutivas do pecado.
Assim, em Seu Filho, crucificado pelos pecados de todos os homens e ressuscitado dos mortos pelo poder do Espírito Santo, o próprio Deus Pai vem ao encontro de Seus filhos que sofrem e transforma a paciência humana em fonte de esperança e vida eterna. A palavra de Deus, pela boca do apóstolo São Paulo, assegura-nos isso: “Mas, se morremos com Cristo, acreditamos que também com Ele viveremos. Sabemos que Cristo, ressuscitado de entre os mortos, já não morrerá; a morte não tem mais domínio sobre Ele. Pois, na morte que teve, morreu para o pecado de uma vez para sempre; e, na vida que tem, vive para Deus.” (Romanos 6:8-10)
Somos chamados a ser uma Igreja que reza pela paz e busca a justiça
“Deixo-vos a paz; dou-vos a minha paz. Não é como a dá o mundo, que Eu vo-la dou.” (João 14:27) A paz é um dos dons do Espírito Santo e, no meio da dor das notícias angustiantes diárias, a Igreja suplica incessantemente ao Senhor a paz para a sofrida Ucrânia e trabalha em conjunto com os outros para restaurar a paz e a justiça na nossa terra.
Somos chamados a ser uma Igreja que dá esperança
Nós, cristãos, somos pessoas de esperança, não porque “esperamos algo melhor”, mas porque cremos em Deus e na vida eterna para a qual o Senhor nos convida. “ A esperança não nos envergonha, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5:5). Paradoxalmente, é precisamente esta fé que nos permite viver plena e profundamente os acontecimentos terrenos, esta guerra em particular. Na perspetiva da eternidade, a realidade quotidiana não se confunde, mas, pelo contrário, adquire contornos claros, o valor sagrado de cada pessoa vem à superfície.
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Queridos irmãos e irmãs em Cristo! Por causa da pandemia, nós, os bispos da IGCU, não nos víamos pessoalmente há três anos. A alegria do nosso reencontro fraterno foi, no entanto, ofuscada pelos horrores da guerra. Foi a guerra, o sofrimento que ela inflige ao nosso povo e os últimos desafios causados pela agressão militar russa contra nossa Pátria, que estiveram no centro das nossas orações, conversas e reuniões sinodais. Além disso, durante a sessão do Sínodo deste ano, refletimos sobre o tema “Sinodalidade e comunhão: a experiência da IGCU”. No contexto das atuais circunstâncias, este não é um tema abstrato. Pelo contrário, a calamidade que o nosso Estado e nosso povo estão a viver chamou-nos a redescobrir o poder da unidade e a necessidade de uma solidariedade diária e duradoura para a vitória. “Na unidade está a força do povo. Deus, dai-nos a unidade!” Sentimos ainda mais intensamente que fomos chamados a fortalecer a unidade dentro do país e a apoiar os nossos fiéis e todas as pessoas de boa vontade fora das suas fronteiras.
Que o poder e a ação do Espírito Santo nos deem a unidade e a fé inabaláveis na vitória da verdade de Deus!
Que o Senhor fortaleça e abençoe os nossos defensores, voluntários, médicos, funcionários do Serviço de Emergência do Estado, o governo legítimo da Ucrânia e todos aqueles que protegem e libertam a Ucrânia do agressor!
Que Ele abrace as famílias daqueles que morreram, os órfãos e as viúvas, os presos e os desaparecidos em ação!
Que Ele conceda a recompensa eterna e a plenitude da vida aos caídos!
Que o óleo do amor misericordioso cure as feridas físicas, mentais e espirituais das vítimas!
Pelas orações da Santíssima Theotokos e de todos os santos da terra da Ucrânia, que Ele conceda a Sua paz e bênçãos ao mundo inteiro!
A benção do Senhor venha sobre vós.
Em nome do Sínodo dos Bispos da
Igreja Greco-Católica Ucraniana
† SVIATOSLAV
Dado em Przemyśl,
na Catedral da Natividade de São João Batista,
no Dia da Colocação do Precioso Manto de
Nossa Senhora Santíssima e Theotokos em Blachernae,
Fumo a sair de um prédio destruído após um ataque aéreo militar russo em Lysychansk, Ucrânia, 17 de junho de 2022. (Crédito: foto CNS/Oleksandr Ratushniak, Reuters.)
ROMA – Não seria apenas um “desastre” se o Papa Francisco visitar a Rússia antes de ir à Ucrânia, como o pontífice disse que gostaria de fazer, mas se isso acontecer, as fronteiras ucranianas poderão ser fechadas ao Papa, de acordo com o arcebispo latino de Lviv.
“Não só os fiéis greco-católicos, mas também nós, não concordamos com todos os gestos do Santo Padre em relação à Rússia; mas talvez não entendamos bem suas intenções e políticas”, afirmou o arcebispo D. Mieczysław Mokrzycki, que lidera a comunidade de 1,5 milhões de fiéis de rito latino na Ucrânia.
“Vamos torcer para que o Papa tenha boas intenções e, com sua maneira de agir, em breve traga paz à Ucrânia”, disse Mokrzycki.
Mesmo antes da invasão da Ucrânia ordenada pelo presidente russo Vladimir Putin em 24 de fevereiro, Francisco já falava sobre uma possível viagem à “Ucrânia martirizada”. Ultimamente, porém, ele expressou o desejo de ir primeiro a Moscovo, para ajudar no processo de diálogo.
Em declarações ao semanário alemão Die Tagespost , Mokrzycki afirmou que “os nossos fiéis dizem que é preciso primeiro dirigir-se à vítima, a quem está em sofrimento, e só depois a quem o causou”.
O prelado também disse que, embora os ucranianos estejam muito gratos ao Papa “por ter estado próximo do povo desde o início com suas orações e muitos apelos”, eles não esqueceram que, até agora, Francisco nunca disse claramente que a Rússia está a levar a cabo uma invasão da Ucrânia.
Mokrzycki disse que os fiéis da Igreja Greco-Católica Ucraniana e outros ucranianos estão intrigados com o que consideram uma atitude ambígua do Papa e as suas ações destinadas a manter abertas as portas do diálogo com a Rússia.
Em março passado, o Papa Francisco revelou em entrevista ao jornal Corriere della Sera que pediu para viajar a Moscovo para encontrar-se com Putin, para pedir-lhe que parasse a guerra na Ucrânia, no entanto, ainda não recebeu resposta.
No entanto, falando à Reuters este mês, Francisco revelou que o Kremlin havia fechado a porta a essa possibilidade, quando a Santa Sé a propôs pela primeira vez há alguns meses, mas agora algo pode ter mudado.
“Eu gostaria de ir (à Ucrânia) e queria ir para Moscovo primeiro”, disse ele. “Trocamos mensagens sobre isso, porque pensei que se o presidente russo me desse uma pequena janela para servir a causa da paz” [vale a pena tentar].
“Agora é possível, depois de voltar do Canadá, é possível que eu vá à Ucrânia”, disse ele. “A primeira coisa é ir à Rússia para tentar ajudar de alguma forma, mas gostaria de ir às duas capitais.”
Francisco estará no Canadá de 24 a 29 de julho.
O arcebispo D. Paul Gallagher, ministro das Relações Exteriores do Vaticano, disse numa entrevista recente que a deslocação de Francisco à Ucrânia pode estar iminente, não descartando uma viagem em setembro.
“O Papa Francisco definitivamente irá à Ucrânia”, disse ele, acrescentando que o Papa está “muito convencido” de que tal visita pode ter resultados positivos.
Além do Canadá, a única viagem papal na programação oficial é o Cazaquistão, de 14 a 15 de setembro. O Papa irá para participar de um encontro inter-religioso. Embora o Vaticano ainda não tenha anunciado oficialmente, Francisco disse à emissora de notícias mexicana Televisa que espera encontrar-se com o patriarca ortodoxo russo Kirill durante esta visita.
Apesar das suas reservas quanto à ida do Papa Francisco a Moscovo, Mokrzycki afirmou que o pontífice é bem-vindo na Ucrânia e que os bispos locais – dos ritos latino e greco-católico – o convidam para uma visita há vários anos.
“Com o início da guerra, este convite tornou-se ainda mais ardente, porque acreditamos que Pedro do nosso tempo tem um dom e uma bênção especial que recebeu de Deus”, disse o presidente dos bispos católicos romanos ucranianos, em comunicado publicado no página da Arquidiocese de Lviv durante o fim de semana.
“Se ele veio à Ucrânia, se ele entrou na terra deste mártir ensanguentado e a abençoou, o Senhor nos concederá graça e fará um milagre, e a paz chegará à nossa pátria”, disse Mokrzycki. “Estamos felizes que o Santo Padre já expressou a sua vontade de vir à Ucrânia”.
Andrii Yurash, principal diplomata da Ucrânia no Vaticano, disse que seu governo está atualmente a trabalhar para tornar realidade o sinal de apoio do Papa, o que seria amplamente apreciado.
Ele disse recentemente ao Crux: “Tenho muitas dúvidas de que isso [vá] acontecer em agosto. Talvez em setembro… no entanto, tudo depende da vontade de Deus.”
“Não é apenas um gesto formal, é um verdadeiro gesto de apoio”, disse ele. “É um verdadeiro gesto de compreensão.”
Entre os muitos sucessos atribuídos pelos meios de comunicação ao Papa Francisco está o “encontro histórico” que aconteceu, a 12 de fevereiro de 2016, em Havana, com o Patriarca Kirill de Moscovo. Um evento, escreveu-se na época, que viu o colapso do muro religioso que durante mil anos dividiu a Igreja de Roma da do Oriente (La Repubblica, 5 de fevereiro de 2016).
O projeto ecuménico do Papa Francisco encalhou, porém, na tempestade da guerra na Ucrânia, abençoada pelo próprio Patriarca Kirill, que, a 9 de maio, foi um dos convidados de honra no desfile militar da Praça Vermelha, em Moscovo.
Kirill, nascido Vladimir Mikhailovich Gundyayev, 16.º patriarca de Moscovo e de todos os russos, é o líder da Igreja Ortodoxa Russa, que conta com 165 milhões de fiéis espalhados por todo o mundo. Nascido em 1946, em Leningrado (atual São Petersburgo), foi consagrado bispo em 1976 e eleito patriarca em 2009. De acordo com documentos do arquivos de Moscovo tornados públicos, em particular do Arquivo Mitrokhin, ele foi um agente da KGB desde o início dos anos 1970. Em parte por causa dessa experiência comum ao serviço da Rússia soviética, Kirill foi apelidado de “o poder brando do poder duro de Putin” (Huffington Post, 14 de abril de 2022).
Na realidade, as origens da estreita relação que liga o altar de Kirill ao trono de Putin remontam à ideologia do Império Bizantino, cujo herdeiro a Rússia afirma ser. Enquanto o cristianismo ocidental manteve a distinção entre autoridade religiosa e poder político, em Constantinopla nasceu o chamado “cesaropapismo”, a subordinação de facto da Igreja ao imperador, sendo este considerado o seu chefe, tanto no campo eclesiástico como no secular. Os patriarcas de Constantinopla foram na verdade reduzidos a funcionários do Império Bizantino, como acontece hoje na Rússia com Kirill, não incorretamente definido pelo Papa Francisco, na sua entrevista de 3 de maio ao Corriere della Sera, como “acólito de Putin.” Esta expressão despertou a ira de Kirill e levou a um comunicado de imprensa do Departamento de Relações Exteriores da Igreja do Patriarcado de Moscovo, segundo o qual “é improvável que tais declarações contribuam para o estabelecimento de um diálogo construtivo entre as Igrejas Católica Romana e Ortodoxa Russa, especialmente necessário no momento.”
A única maneira de o Patriarcado de Moscovo sair do isolamento em que se encontra hoje, após a guerra na Ucrânia, foi justamente o relançamento do diálogo com o Vaticano, mas o segundo encontro entre o Papa Francisco e Kirill, que deveria ter lugar em Jerusalém, no próximo dia 14 de junho, foi cancelado pela Santa Sé.
O patriarca ortodoxo de Constantinopla, Bartolomeu, por sua vez, numa entrevista concedida, a 2 de maio de 2022, ao jornal Kathimerini Chipre, condenou abertamente Kirill, com estas palavras: “Não podes reivindicar ser irmão de outro povo e abençoar a guerra que o teu país está a travar contra o teu irmão. (…) Não podes manter que a Ucrânia te pertence eclesiasticamente e deixar que os fiéis pertencentes à entidade eclesiástica com sede em Moscovo sejam mortos e as suas igrejas destruídas pelos bombardeamentos russos.” Estas críticas são compartilhadas até mesmo pelos fiéis da Igreja Ortodoxa Ucraniana que estão sob a jurisdição de Moscovo. Quatrocentos sacerdotes desta igreja apelaram ao Conselho dos Primazes das Antigas Igrejas Orientais, apresentando a acusação de que “Kirill prega a doutrina do ‘Mundo Russo’, a qual não corresponde ao ensinamento ortodoxo e deve ser condenada como heresia”. Se o conselho chegasse a um acordo, deveria “privá-lo do direito de ocupar o trono patriarcal”.
Além disso, Kirill ainda não era patriarca quando, em 2002, Vladimir Putin, presidente da Federação Russa por dois anos, iniciou a expulsão de missionários católicos da Rússia, em nome do “mundo russo”. Um especialista em assuntos da Rússia, Pe. Stefano Caprio, lembra que a Ortodoxia já havia sido elevada acima de todas as outras confissões, como a “religião de Estado”, na lei de liberdade religiosa revista em 1997 e inspirada no patriarcado de Moscovo. “No preâmbulo dessa lei”, explica o Pe. Caprio, “proclamou-se que a religião histórica da Rússia era precisamente a Ortodoxia, enquanto quatro outras religiões eram reconhecidas como ‘tradicionalmente secundárias’: Islamismo, Judaísmo, Budismo e… Cristianismo, obviamente significando católicos e protestantes, há séculos presentes na Rússia mas distintos dos ortodoxos como outra religião. Isso não foi uma questão de descuido e, de facto, essa expressão nunca foi corrigida: a Ortodoxia Russa é, na verdade, uma dimensão espiritual distinta na qual os dogmas cristãos são misturados com os remanescentes do paganismo numa extensão muito maior do que em outros ramos do cristianismo, sendo, acima de tudo, são reformulados em ideais nacionais universalistas que apontam para a Rússia como o ‘povo salvífico’ para a humanidade como um todo.”
Os primeiros a pagar o preço por esta conceção político-religiosa na Rússia são os católicos, que para o Patriarcado de Moscovo continuam como “inimigos” temidos por causa de seu “proselitismo”, apesar de serem uma pequena minoria da população. São acusados de minar a unidade religiosa e política da Rússia, à qual Putin faz referência constante. Portanto, observa o Pe. Caprio, “ quando houve a revolta anti-russa de Maidan, em 2014, os círculos patriarcais apontaram o dedo aos Uniatas (nota do editor: Greco-Católicos) como os verdadeiros inspiradores dos motins, chegando até a atribuir-lhes a paternidade espiritual dos grupos mais agressivos da extrema direita ucraniana, os ‘neonazis’ que Putin acusou de inimigos do ‘mundo russo’, contra quem era necessário empreender a ‘operação militar especial’ defensiva para libertar russos e ucranianos da influência ocidental”.
A invasão russa da Ucrânia trouxe à tona as contradições da Igreja Ortodoxa Russa, representada hoje por Kirill. A importância do encontro ecuménico de 2016, segundo o Papa Francisco, está na possibilidade de criar uma ponte religiosa entre as Igrejas Católica e Ortodoxa, em nome do princípio da sinodalidade. No entanto, é esse mesmo princípio que justifica a posição de Kirill, cujo nacionalismo surge da natureza autocéfala do patriarcado de Moscovo e da sua simbiose com o poder político.
A diferença fundamental é esta. A Igreja de Moscovo é nacional, enquanto a de Roma é universal, chamada “católica” justamente porque não se identifica com nenhum povo ou cultura e anuncia o Evangelho a todas as nações, até os confins da terra (Atos 1:8). A Igreja Católica Romana não conhece limites de tempo e espaço e está destinada a unir numa família todos os povos da terra. É a única que pode lançar um apelo por uma paz que transcenda os interesses, as ambições de nações individuais. O seu centro de unidade é o Romano Pontífice, que exerce pleno poder sobre a Igreja universal. A Igreja Católica pode tolerar um mau papa, como muitos o foram ao longo da história, mas sem a pedra de Pedro o mundo estaria mergulhado no caos. E hoje, infelizmente, o Patriarca Kirill apoia o caos causado por Vladimir Putin no coração da Europa.
D. Siatoslav Shevchuk, líder da Igreja Greco-Católica Ucrania, e D. Visvaldas Kulbokas, núncio apostólico na Ucrânia.
A ideia era que duas mulheres, uma ucraniana e outra russa, juntas, em representação das duas nações beligerantes, transportassem a cruz na XIII Estação da Via-Sacra de Sexta-feira Santa, presidida por Francisco, no Coliseu de Roma. O texto proposto para a meditação seria politicamente neutral:
Morte em todo o lado. Vida que parece perder o valor. Tudo muda em poucos segundos. A nossa vida, os nossos dias, a neve despreocupada do inverno, levar os filhos à escola, trabalho, abraços, amizades… Tudo. De repente, tudo perde o significado e o valor. “Onde estais, Senhor? Onde Vos escondeis? Queremos a nossa vida de volta, como antes. Porquê tudo isto? Que mal fizemos nós? Porque nos abandonastes? Porque abandonastes os nossos povos? Porque separastes as nossas famílias deste modo? Porque não temos mais vontade de sonhar e de continuar a viver? Porque é que a minha terra se tornou tão escura como o Gólgota?” Não temos mais lágrimas. A raiva deu lugar à resignação. Sabemos que nos amais, Senhor, mas não sentimos esse amor e isso leva-nos ao desespero. Acordamos de manhã e apenas nos sentimos felizes por alguns momentos, logo de imediato pensamos como nos será difícil reconciliar com tudo isto. Onde estais, Senhor? Falai connosco no meio do silêncio da morte e da divisão e ensinai-nos a ser pacificadores, irmãos e irmãs, e a reconstruir o que as bombas tentaram destruir.
Texto previsto para a meditação da XIII Estação da Via-Sacra, presidida pelo Papa Francisco, no Coliseu de Roma, na Sexta-Feira Santa de 2022 (Fonte: vatican.va; tradução nossa)
Os católicos ucranianos ficaram indignados com a possibilidade de ucranianos e russos carregarem juntos a cruz, como se a cruz do agredido e do agressor pudesse ser a mesma, e pediram ao arcebispo-mor de Kiev, que transmitisse à Sé Apostólica a sua rejeição desta iniciativa, em nome dos ucranianos de todo o mundo. Um ato simbólico como este só faria sentido se o agressor tivesse intenção de cessar a sua agressão, se estivesse arrependido e pedisse perdão pelo mal infligido à nação agredida.
Considero essa ideia inoportuna, ambígua e que não tem em conta o atual contexto de agressão militar da Rússia contra a Ucrânia. Para os greco-católicos da Ucrânia, os textos e gestos da estação XIII desta Via Sacra são incompreensíveis e até ofensivos, especialmente num contexto em que se espera por um segundo ataque ainda mais sangrento das tropas russas às nossas cidades e aldeias. Eu sei que os nossos irmãos católicos romanos compartilham desses pensamentos e emoções.
D. Sviatoslav Shevchuk (Fonte: risu.ua, em 12 de abril de 2022; tradução nossa)
Esta reação foi assumida também pelo núncio apostólico da Santa Sé na Ucrânia.
O gesto de reconciliação em si é bom, mas os detalhes das circunstâncias podem não ser claros do lado de fora do conflito porque são ambíguos. É por isso que surge uma indignação tão forte. […]
Parece-me que nas últimas 24 horas fiz todo o possível para transmitir a inconsistência deste gesto litúrgico no contexto da terrível guerra e dos seus planos de possível escalada. Deixo o resto com Deus. Também estou convencido de que, pessoalmente, fiz tudo que me era possível para evitar um desnecessária palavra de condenação dirigida àqueles que não avaliaram completamente todas as circunstâncias. Cometi um erro, ao tentar fazer meus próprios esforços para parar a guerra. Espero sinceramente que os organizadores ainda tenham oportunidade de corrigir a cena da Via Sacra e evitar mais divergências sobre este tema.
D. Vitaliy Kryvytskyi (Fonte: risu.ua, em 13 de abril de 2022; tradução nossa)
Deste modo, os católicos ucranianos pediram ao Vaticano que abdique desta iniciativa simbólica na Sexta-feira Santa.
Nos últimos anos, os católicos americanos viram o seu país em forte contradição com muitas das suas crenças mais sólidas – desde o casamento tradicional à defesa da família e à defesa dos nascituros. Como reação, muitos de nós olhámos para o mundo exterior em busca de um país cristão que emitisse um vislumbre de esperança.
Alguns católicos conservadores encontraram na Rússia um potencial aliado. No entanto, dada a invasão russa da Ucrânia, talvez precisemos de olhar um pouco mais de perto.
É verdade que a Rússia do presidente Putin defende a família e o casamento tradicional, mas também a Ucrânia do presidente Zelensky. Estes dois países são praticamente semelhantes em termos de “direitos gay” e ambos se opõem veementemente ao “casamento” entre pessoas do mesmo sexo. Nesta questão, ambos os países são bastante conservadores.
Quando se trata do aborto, o presidente Putin e o presidente Zelensky dirigem países muito abertos à legalização do aborto. A Rússia tem a maior taxa de aborto per capita do mundo, enquanto o presidente Zelensky deseja tornar o aborto mais acessível na Ucrânia. O presidente Zelensky também quer a prostituição e outras práticas imorais legalizadas. Embora a prostituição seja também ilegal na Rússia, é punível apenas com uma multa mínima. A prostituição é muito popular na Rússia e até elogiada pelo próprio presidente Putin.
A Rússia e a Ucrânia, embora ambas cristãs em algumas questões, são muito parecidas com qualquer outra nação, quando se trata das suas leis – são ao gosto do freguês, nas questões proeminentes, seja cristão ou não cristão.
No entanto, mesmo com todos esses factos, ouve-se dizer que a Rússia é um país cristão, como se a Ucrânia fosse menos. E ouvir-se-á dizer que a agressão russa à Ucrânia é uma espécie de cruzada cristã contra o ateísmo ocidental. Tal perspectiva, no entanto, não se materialliza nos factos.
Olhando para a demografia, a Rússia é, de facto, menos cristã do que a Ucrânia. Além disso, e mais importante, a Rússia também é menos católica do que a Ucrânia. A Ucrânia não só tem uma percentagem maior de católicos (7,8% para 0,5%, aproximadamente), mas também tem um maior número total de católicos (3.354.000 para 717.101, em números aproximados).
Além disso, a Ucrânia abriga a maior Igreja Católica Oriental, a Igreja Greco-Católica Ucraniana. A sua antiga sede localiza-se em Lviv, localidade para onde os EUA e muitos dos seus aliados ocidentais estão a transferir as suas embaixadas. Lviv é uma cidade e um oblast (província) onde a maioria da população é greco-católica. Dois outros oblasts na Ucrânia Ocidental também são católicos. Lviv foi e ainda é o lar da Igreja Católica Romana (Rito Latino) e da Igreja Católica Arménia (outra Igreja Católica Oriental) nesta região da Ucrânia.
A Igreja Greco-Católica Ucraniana não é apenas a maior Igreja Católica Oriental, ela possui também uma ligação direta à cristianização da Rus’ de Kiev, como uma das igrejas sucessoras da conversão do Príncipe São Vladimir I o Grande, de Kiev, ao cristianismo, em 988. Portanto, as raízes católicas dos ucranianos são profundas.
Além da Igreja Greco-Católica Ucraniana, a Ucrânia tem ainda a Igreja Greco-Católica Rutena, com sua sede em Pittsburgh, Pensilvânia, nos EUA. Esta é a igreja dos rutenos ou rusyns, outro grupo eslavo oriental que constitui uma minoria considerável na Ucrânia, para além de outras áreas da cordilheira dos Cárpatos onde também vivem. Esta área é chamada Carpato-Ruténia e inclui parte da Ucrânia, Eslováquia, Polónia, Hungria e Roménia, correspondendo à mesma região de onde os croatas brancos são originários, uma das tribos que fundaram a Croácia, nação fortemente católica.
Na Ucrânia, os rutenos habitam o Oblast de Zakarpatska, na Ucrânia Ocidental, onde a Igreja Greco-Católica Rutena é a principal jurisdição católica. A Igreja Greco-Católica Rutena pode traçar as suas origens até São Cirilo e São Metódio, que converteram os eslavos da Grande Morávia ao cristianismo, em 863.
É verdade que também existe uma Igreja Greco-Católica Russa, mas essa nunca conquistou tantos membros nem um sentido de identidade nacional como o da Igreja Greco-Católica Ucraniana.
Devido às alterações nas fronteiras da Ucrânia, os ucranianos viviam sob o domínio dos Habsburgos em lugares como Lviv e, portanto, têm raízes mais profundamente católicas. Muitos da diáspora ucraniana, especialmente nos Estados Unidos, fazem parte da Igreja Greco-Católica Ucraniana. O mesmo não pode ser dito relativamente à Rússia, onde não há qualquer cidade ou região importante, nem passado histórico, em que a Igreja Greco-Católica Russa desempenhe um papel relevante.
Como se pode constatar, existe uma profunda afinidade entre os ucranianos e a Igreja Católica, o qual não encontra paralelo na Rússia. Esses católicos são geralmente os mais determinados patriotas da Ucrânia. Há uma razão para isso. Os ucranianos olharam muitas vezes para o Ocidente, como quando, durante o Reino da Galícia-Volínia, buscaram proteção contra os mongóis, nos anos 1200. Este reino e a região da Galícia tinham como centro, Lviv, a sua capital.
Lviv e as outras regiões católicas ucranianas do Ocidente foram também fundamentais na luta pela independência ucraniana no Movimento “Rukh”, que viu a Ucrânia alcançar a independência, em 1991, da brutal URSS liderada pela Rússia – com 92,5% dos votos – e uma considerável maioria em todos os oblasts, exceto na República Autónoma da Crimeia e numa cidade com estatuto especial, Sebastopol, onde também havia maioria mas com uma participação extremamente baixa.
Os católicos ucranianos e os seus compatriotas buscaram a independência dos abusos que os impérios liderados pela Rússia cometeram contra o povo da Ucrânia ao longo dos anos. O clero católico na União Soviética foi disso exemplo, com tantos mártires e confessores. Contam-se ainda 128 bispos e freiras da Igreja Greco-Católica Rutena enviados para os gulags soviéticos e 36 padres greco-católicos rutenos assassinados.
A Igreja Greco-Católica Ucraniana foi, entretanto, ilegalizada pela União Soviética de 1946-1989. Em 2014, na Crimeia, muitos clérigos católicos foram forçados a sair, depois da invasão russa. Alguns pensam que esses abusos foram provocados apenas pelo comunismo, mas, na verdade, como se ponde constatar no exemplo da Crimeia, parece ser também um problema da Federação Russa.
A invasão russa da Ucrânia trará muito sofrimento católico. Como católicos leais, devemos lembrar que a busca de outras grandes expências eslavas não foram motivo de regozijo para nossa Igreja ou para a maioria das outras, no passado recente. A Rússia tem frequentemente objetivos revanchistas e, embora possa parecer que a Rússia vai parar na Ucrânia, há sempre preocupações de que a sua invasão possa alastrar a outras partes da antiga União Soviética e do Pacto de Varsóvia.
Países católicos como a Polónia, a Eslováquia e a Hungria poderão ser os próximos na fila para a agressão russa. Além disso, outros países católicos como a Croácia e a Eslovénia estão a poucos passos de distância. Já a católica Lviv está sob fogo cruzado. Para os católicos, a ameaça da Rússia é muito real, não apenas dentro da Rússia.
Os católicos não devem apenas hesitar em apoiar uma invasão putinista pelo simples facto de as guerras desnecessárias serem contra a nossa fé, mas devem opor-se à invasão da Ucrânia porque a nossa fé é forte naquele país. Se os católicos conservadores desejam um mundo mais católico, devem fazer todos os esforços para apoiar a Ucrânia, um dos poucos países com uma herança verdadeiramente católica.