Fátima e a Rússia

A palavra Rússia representa uma espécie de sinal luminoso intermitente sempre a piscar dentro da Igreja Católica desde 1917, ano das aparições de Fátima. O mesmo ano em que teve lugar a revolução bolchevique naquele país, começando em São Petersburgo e alastrando-se por todo o lado, para dar início a uma série de transformações políticas, sociais, económicas, culturais e religiosas no mundo inteiro. Esta vaga revolucionária e autocrática marcou uma era de terror à escala mundial que encontrou na Igreja Católica o seu principal obstáculo.

Ainda a revolução mal tinha começado e Nossa Senhora de Fátima aparece no outro extremo da Europa a falar da Rússia. Isto parecia não fazer qualquer sentido, principalmente naquele lugarejo perdido por entre as serranias do pobre e atrasado Portugal do primeiro quartel do séc. XX, desiludido com a aurora republicana. Os próprios videntes de Fátima, que não passavam de três humildes crianças iletradas, mas muito piedosas, estavam confusos com a insistência e a gravidade com que a Rússia era referida nas mensagens. Devia ser uma “mulher muito má”, pensavam eles!

As ideias socialistas e comunistas acabariam por instalar-se em vários países, ao longo de todo o séc. XX, através de revoluções sangrentas que deram lugar a regimes políticos autoritários e despóticos, principalmente depois da Conferência de Yalta e após a conclusão da 2ª Guerra Mundial. Foi a partir de então que se consolidou uma perigosa divisão do planeta em dois grandes blocos rivais, poderosamente armados, para alimentar aquilo que viria a ser conhecido como a Guerra Fria e a constante ameaça de um holocausto nuclear.

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Wiston Churchill, Franklin Roosevelt e Joseph Stalin, Crimeia (Ucrânia), fevereiro de 1945.

Não obstante a escala mundial que assumia este fenómeno, no que se refere concretamente às repercussões religiosas, a Europa foi sempre o palco principal, embora não exclusivo. Este continente assistiu à separação da Santa Igreja Católica Romana em dois universos paralelos que viveram a Fé de modos diferentes, o Ocidental e do Leste.

A Leste, nos regimes comunistas sob a esfera de influência russa, materialistas desde a sua génese, viveu-se um tempo de perseguições constantes, onde o Catolicismo penou para sobreviver. A recusa de colaboração com os regimes comunistas do Leste produziu longas listas de mártires católicos nas igrejas nacionais, onde a Igreja Uniata, católicos de Rito Oriental, foram quase aniquilados porque eram indesejáveis na sua essência. Sendo ortodoxos de rito e de tradição e, ao mesmo tempo, católicos na Fé e na obediência a Roma, constituíam uma afronta, quer ao regime político soviético, quer à Igreja Ortodoxa Russa, que viam neles uma espécie de Cavalo de Troia, fabricado pelo Ocidente, para minar todo sistema dentro da cortina de ferro.

Os países ocidentais, historicamente bastiões do Catolicismo Romano, foram-se democratizando, obedecendo a um padrão laicizante comum, de cariz humanista, inspirado nos ideais franco-maçónicos. Aqui, a Igreja Católica não esteve sujeita ao mesmo tipo de provações do Leste, o que acabaria por lhe permitir algum relaxamento. Arrastados pelo rápido devir social que marcou a segunda metade do séc. XX, os católicos ocidentais acabariam por transformar-se. Essa transformação conduziu, em poucos anos, a uma mudança radical na vivência do Catolicismo, mais concretamente a partir da década de 60. A população ocidental assistiu a uma diminuição acentuada da crença e da prática religiosa, mesmo entre os batizados e os que tiveram formação religiosa inicial.

Ao contrário do que acontecia nos regimes comunistas do Leste, o materialismo dos países ocidentais não foi imposto pelo Estado, foi antes adotado, de forma livre e egoísta, pelas pessoas (católicos incluídos), entranhando-se institucionalmente em todos os domínios da sociedade, desde as leis básicas nacionais até às principais políticas económicas, sociais, educativas ou de saúde implementadas.

Em termos religiosos, o início da década de 60 foi marcado pela convocação do Concílio Vaticano II, que conduziria a grandes transformações orgânicas na Igreja Católica. As suas repercussões fizeram-se sentir essencialmente nos católicos de Rito Latino, os quais correspondem à esmagadora maioria do Catolicismo e, por razões históricas, têm no Ocidente o seu território natural. As transformações foram tais, ao ponto de estes se tornarem, hoje, quase irreconhecíveis face ao ponto de partida. Introduziram-se grandes inovações institucionais, alteraram-se rituais, protocolos, tradições, abordagens pastorais, enfim, a Igreja modernizou-se, abrindo-se ao mundo com a expectativa de se renovar espiritualmente e crescer em santidade. Todavia, passaram-se alguns anos e os resultados foram avassaladores. Ao contrário do que se esperava, as vocações religiosas acabaram por diminuir drasticamente, os seminários fecharam, a indumentária clerical foi oferecida aos museus, multiplicaram-se os abusos e heterodoxias nas celebrações religiosas, a Igreja secularizou-se e a população adotou uma nova moral não católica, relativista, onde o pecado e a virtude são postos em causa e confundidos.

Chegados a 1989, cai o muro de Berlim e os regimes socialistas encontram-se em colapso por toda Europa. Cessa a Ordem de Yalta e vulgariza-se o conceito de Nova Ordem Mundial no discurso político internacional. A Igreja Católica, animada com a Perestroika, começa a festejar a “conversão da Rússia” prevista em Fátima em 1917… Todavia, olhando para o que se tem passado desde então, é caso para perguntar: mas afinal, a Rússia converteu-se a quê?

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Fragmento do Muro de Berlim oferecido ao Santuário de Fátima.

As notícias de hoje mostram que os católicos continuam a ter grandes dificuldades em viver normalmente a sua religião em território russo ou sob influência russa (como acontece em algumas regiões ucranianas, por exemplo), principalmente os católicos de Rito Ortodoxo. As divergências teológicas, acentuadas ao longo de vários séculos, mantêm-se, nomeadamente, ao nível das doutrinas do filioque, da Immaculata, da supremacia petrina, da infalibilidade papal e por aí adiante… No que concerne ao comunismo, são constrangedores os elogios, cada vez menos esporádicos, ao passado soviético, quer por parte das chefias políticas moscovitas, quer por parte dos líderes religiosos da Igreja Ortodoxa Russa (em situação de cisma desde 1054). Mais ainda, as perigosas manobras geopolíticas e militares protagonizadas pela Rússia nos últimos anos ganham cada vez mais destaque na cena internacional. Neste campo, onde os países ocidentais também não têm as mãos limpas, antes pelo contrário, podemos estar mesmo à beira de uma catástrofe de dimensão bíblica, mas oxalá nos enganemos.

Pelo que se referiu e por muito mais, é curioso que a Igreja Católica continue a festejar, de forma exuberante, a conversão da Rússia ou, se quisermos, a celebrar a desnecessidade de conversão da mesma. Mas o que é ainda mais assustador é ver a Rússia também a festejar uma espécie de conversão da Igreja Católica a algo que ainda não deu para ver bem o que é, mas que, sem dúvida alguma, agrada às autoridades políticas e religiosas daquele país.

Ainda há pouco tempo, no dia 12 de fevereiro de 2016, numa inédita cimeira cubana, o Papa Francisco e o Patriarca Kirill celebraram juntos o momento histórico de uma forma, no mínimo, estranha. Os beijos e abraços trocados entre os dois lideres religiosos nas Caraíbas, num país onde ainda governa a ditadura comunista, não desanuviam a azia provocada pela leitura do documento conjunto,  solenemente assinado por ambos, e entretanto publicado. Nesse documento, entre outras intenções interessantes, os declarantes comprometem-se a não acabar com a fratura existente entre a Igreja Ortodoxa Russa e Roma, mas antes, e apenas, a colaborar em alguns objetivos comuns. Essa fratura não foi considerada prioritária, pelo menos para já. Por outro lado, os católicos orientais, principalmente a Igreja Greco-Católica Ucraniana, sentiram um enorme amargo de boca  com esta “salada russa”. Tudo isto é muito mais perturbador quando vemos que o encontro terá sido provavelmente combinado com o todo poderoso Vladimir Putin, sendo Raúl Castro, atual líder da ditadura militar marxista cubana por direito dinástico, o indultado anfitrião do evento. Uma coisa é certa, nenhum dos presentes se lembrou de Fátima, ou então não quis dizer. Convém, nesta altura, relembrar que nenhum dos manuscritos da Irmã Lúcia pertencentes ao domínio público se refere à necessidade de privilegiar umacultura del encuentro”, mas a  palavra “conversão” é aí repetida com alguma frequência. Um problema meramente semântico, dirão alguns…

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Papa Francisco e Patriarca Kirill em Cuba, a 12 de fevereiro de 2016.

O clima de festa em torno da cimeira ecuménica bilateral de Havana contagiou o mundo, principalmente dentro da cristandade. A comunicação social ocidental, incluindo a católica, sublinhou as qualidades humanas do Papa Francisco que permitiram o feito histórico do milénio. Qualidades que, de acordo com esta linha de pensamento dominante e festiva, terão certamente faltado aos papas anteriores. As suas qualidade humanas – admitindo essa hermenêutica – ganham ainda mais significado quando constatámos que, escassas semanas antes desta extraordinária aproximação ao líder da Igreja Ortodoxa Russa, o mesmo Papa teve um caloroso encontro com as heterodoxas senhoras bispas luteranas da Europa do Norte, onde até lhes foi dada a comunhão eucarística, apesar de os luteranos não acreditarem na transubstanciação. Ou seja, parece que as razões doutrinais e dogmáticas que afastaram as igrejas cismáticas de Roma ao longo de tantos séculos foram todas resolvidas de uma assentada, ou então deixaram de ter importância. Estaremos nós a assistir a uma gigantesca onda de “conversão” à Fé Católica de escala mundial? Ou estaremos antes a assistir a uma assustadora conversão da Fé Católica naquilo que os seus tradicionais inimigos sempre desejaram que ela fosse?

A centralidade da Rússia na mensagem de Fátima é uma constante incontornável, não só em 1917, mas também em outras aparições e locuções testemunhadas pela Irmã Lúcia ao longo da sua vida. A Virgem de Fátima prometeu a conversão da Rússia, pedindo, para tal, que esta fosse solenemente consagrada pelo Santo Padre, em união com todos os bispos do mundo, ao seu Imaculado Coração. Uma condição relativamente à qual, apesar de várias tentativas papais, em rigor, ainda não terá sido completamente satisfeita; desvalorizemos todavia, por agora, os detalhes e avaliemos antes os resultados.

De acordo com as orientações de Nossa Senhora, o calendário ideal para esta consagração seria a partir de 1929, momento em que foi feito o pedido na aparição de Tui, até, provavelmente, à data de início dos trabalhos do Concílio Vaticano II, ou seja 1961. Entenda-se o calendário ideal como aquele que permitiria afastar integralmente os perigos anunciados em Fátima. Esta data deveria ser o limite temporal para a realização dessa consagração, talvez referido em alguma parte menos conhecida do 3.º Segredo de Fátima, o qual, de acordo com algumas das personalidades que afirmam ter tido acesso ao documento, constituía uma espécie de ultimato para a Igreja.

O envelope do 3.º Segredo de Fátima tinha de facto uma indicação exterior, escrita pela mão da Irmã Lúcia, informando que o mesmo deveria ser aberto em 1960. Ou aceitávamos as condições impostas pelo Céu, ou iríamos sofrer todas as calamidades ali descritas até ao “triunfo” do Imaculado Coração de Maria, que irá acontecer “por fim” com a conversão da Rússia.

Sucessão cronológica das principais referências à Rússia nas profecias de Fátima:

1.º) “Para a impedir [a guerra] virei pedir a consagração da Rússia a meu Imaculado Coração e a comunhão reparadora nos primeiros sábados. Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz, se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja, os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas […].” (Fátima, 1917)

2.º) “É chegado o momento em que Deus pede para o Santo Padre fazer, em união com todos os bispos do mundo, a consagração da Rússia ao Meu Imaculado Coração, prometendo salvá-la por este meio.” (Tui, 1929)

3.º) “Não quiseram atender ao meu pedido. Como o rei de França, arrepender-se-ão, e fá-lo-ão [a consagração da Rússia], mas será tarde.” (Rianjo, 1931)

4.º) A Rússia terá já espalhado os seus erros pelo mundo, provocando guerras, perseguições à Igreja: o Santo Padre terá muito que sofrer.” (Rianjo, 1931)

5.º) “[…] por fim o meu Imaculado Coração triunfará, o santo Padre consagrar-me-á a Rússia que se converterá e será concedido ao mundo algum tempo de paz.” (Fátima, 1917)

Palavras de Nossa Senhora de Fátima; Memórias da Irmã Lúcia.

O Papa reinante em 1960 seria João XXIII, o “Papa bom”. Quando abriu o envelope, na presença de dois ou três cardeais próximos, contando ainda com a ajuda de interpretes para a tradução do português, inteirou-se do conteúdo mas, em vez de o divulgar conforme se esperava, optou por ordenar o seu arquivamento. Aparentemente, ter-se-á desinteressado por qualquer conselho mais pessimista, pois os cenários apocalípticos para Igreja não faziam muito sentido no início da década de 60… Porque não tentar dialogar com os inimigos em vez de condenar diretamente as suas ações? João XXIII prosseguiu otimista com os trabalhos do concílio ecuménico, esperando, como a maior parte do seu rebanho pelo mundo fora, uma nova aurora para a Igreja e para a humanidade. Aliás, muitos entenderam que uma das frases do célebre discurso papal proferido na abertura do Concílio Vaticano II seria precisamente uma ressonância da leitura do 3º Segredo de Fátima.

“Mas parece-nos que devemos discordar desses profetas da desventura, que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo.”

João XXIII na Abertura Solene do Concílio Vaticano II, 11 de outubro de 1962.

Se o Terceiro Segredo de Fátima era de facto um ultimato, então a Igreja desvalorizou-o.

Aceitando que nesse manuscrito dissesse qualquer coisa como têm mesmo de fazer isto ou então irá acontecer aquilo, neste momento, estaremos viver aquilo, mas numa fase muito avançada. O supracitado discurso papal não condenou o comunismo nem o regime soviético que perseguia os Católicos, e não se referiu à necessidade de conversão da Rússia. Não se aproveitou a oportunidade da presença dos bispos em Roma para realizar a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria, nos termos pedidos pela Nossa Senhora de Fátima, e,  em alternativa, permitiu-se a presença de observadores da Igreja Ortodoxa Russa durante os trabalhos do concílio ecuménico.

O Concílio Vaticano II inaugurou uma nova fase de relacionamento entre a Igreja Católica e o mundo exterior, caracterizada pela abertura e pelo diálogo. Esta nova realidade permitiu o aparecimento de canais diplomáticos entre a Santa Sé e os regimes políticos hostis, bem como o diálogo ecuménico com as religiões não católicas. Neste âmbito, a Santa Sé adotou uma nova atitude, mais contida e negociadora, a que muitos chamaram a ostpolitik vaticana, perante os regimes que perseguiam a Fé Católica. Mais de meio século depois, talvez esteja na hora de avaliar os seus resultados.

Muito foi escrito sobre Fátima e a sua relação com a Rússia ao longo de quase um século. Nossa Senhora prometeu  a conversão da Rússia e um tempo de paz que seria concedido ao mundo. Grande parte da Igreja Católica tem interpretado estas profecias como meros factos históricos consumados. No entanto, verificamos que o tempo de paz tarda a chegar e o mundo assiste hoje a uma apostasia generalizada dentro da própria Igreja Católica. Uma crise de fé sem precedentes, que vai desde as mais insignificantes instâncias seculares até às mais altas patentes eclesiásticas. Que legitimidade institucional terá agora esta Igreja para pedir a conversão dos outros? Os próprios católicos deixaram de acreditar no Catolicismo, muitos deles já nem sabem o que é isso.

Talvez seja melhor, para se evitar cair em ilusão, direcionar o olhar também para o presente e para o futuro quando se pensa em Fátima. Nossa Senhora escolheu o dia 13 – para muitos esta escolha é, em si, uma mensagem – para transmitir ao mundo uma advertência fatídica que constitui, ao mesmo tempo, uma mensagem de amor divino e de esperança. Talvez o mais importante capítulo da história de Fátima esteja ainda por escrever e, nesse caso, a Rússia não passará despercebida.

“Iludir-se-ia quem pensasse que a missão profética de Fátima esteja concluída.”

Bento XVI, homilia proferida em Fátima a 13 de maio de 2010.

Podemos no entanto ter já uma certeza, no final, o Imaculado Coração de Maria triunfará.

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 Basto 03/2016