Magistério reversível não é magistério

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Por Christopher A. Ferrara

O Papa Francisco evidentemente decidiu que pode “reverter” o ensinamento constante da Igreja a respeito da admissibilidade da pena capital, um ensinamento enraizado nas palavras do próprio Cristo a Pilatos, no ensinamento de São Paulo e nos pronunciamentos dos Papas e concílios em toda a história da Igreja, conforme eu discuti num artigo que escrevi para a revista Crisis.

Hoje, dia 2 de agosto, o Vaticano anunciou que “O Sumo Pontífice Francisco” (observe-se como o humilde “Bispo de Roma” se torna no “Sumo Pontífice” sempre que há necessidade) aprovou “a seguinte nova redação do n. 2267 do Catecismo da Igreja Católica, ordenando a sua tradução nas várias línguas e inserção em todas as edições do referido Catecismo.”

Pena de morte

2267. Durante muito tempo, considerou-se o recurso à pena de morte por parte da autoridade legítima, depois de um processo regular, como uma resposta adequada à gravidade de alguns delitos e um meio aceitável, ainda que extremo, para a tutela do bem comum.

Hoje vai-se tornando cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos. Além disso, difundiu-se uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado. Por fim, foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos sem, ao mesmo tempo, tirar definitivamente ao réu a possibilidade de se redimir.

Por isso a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que «a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa»[1], e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo.

[in Boletim da Sala de Imprensa da Santa Sé, 02/08/2018]

Esta pretensa “reversão” de todos os ensinamentos anteriores da Igreja é obviamente absurda.

Em primeiro lugar, reduz o ensinamento constante do Magistério de que a pena de morte é admissível para as ofensas mais graves, sobretudo o assassinato, à expressão “durante muito tempo, considerou-se […] como uma resposta adequada à gravidade de alguns delitos”.

Durante muito tempo considerou-se? Quem considerou, mais precisamente? O homem da rua? A Enciclopédia Britânica? Os resultados de um estudo de opinião da [empresa de sondagens] Gallup? Não há referência alguma ao ensino bimilenar da Igreja, que é tratado como se nunca tivesse existido. Existe apenas uma única nota de rodapé que remete para uma comunicação isolada de Francisco no “Discurso aos participantes no encontro promovido pelo Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização”…

Em segundo lugar, o texto não oferece nenhuma fundamentação para a “reversão” além de meras afirmações de factos circunstanciais em oposição a princípios morais universais:

  • “vai-se tornando cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não se perde…”
  • “uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado…”
  • “sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos…”

É suposto acreditarmos que o Magistério não tinha plena consciência da dignidade humana dos criminosos antes da chegada de Jorge Bergoglio de Buenos Aires?

E desde quando a dignidade humana é incompatível com uma punição condigna (adequada) por um crime como o assassinato? Pelo contrário, uma defesa da dignidade humana pode exigir a pena de morte. Como o Catecismo do Concílio de Trento ensina, aludindo à verdade revelada no ensinamento de São Paulo: “O uso da espada civil, quando empunhada pela mão da justiça, longe de envolver crime de assassinato, é um ato de obediência primordial a este mandamento que proíbe o assassinato”.

Quatro séculos depois, o venerável Papa Pio XII repetiu esse ensinamento constante: “Mesmo quando se coloca a questão da condenação de alguém à morte, o Estado não descarta o direito de um individuo à vida. É então tarefa da autoridade pública privar o condenado do bem da vida, em expiação da sua culpa, depois de este já se ter privado do direito à vida pelo seu crime.” (AAS, 1952, p. 779 e p. seq).

Que entende Francisco por “uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado”? Absolutamente nada. Isto é palavreado vazio a camuflar a sua opinião pessoal.

Quanto à alegação de “sistemas de detenção mais eficazes”, que tem isso a ver com a legitimidade moral da pena capital para crimes capitais, que envolve apenas retribuição e expiação da culpa, não um mero confinamento por segurança pública? Além disso, muitas nações têm “sistemas de detenção” completamente inadequados, de modo que o pretexto não se enquadra.

E quanto aos prisioneiros que matam companheiros de prisão ou guardas prisionais, mesmo nos mais modernos “sistemas de detenção”? Essa lacuna, num raciocínio já frágil, nem sequer é abordada.

Baseando-se literalmente em nada além do que Francisco pensa, conclui o novo texto: “Por isso a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que «a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa»[1], e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo.”

Não, “a Igreja” não pode de repente ensinar o oposto do que sempre ensinou a respeito da pena capital. Francisco, e somente Francisco, o faz.

Aqui vemos mais uma vez a sabedoria da observação do Padre Gruner, baseada na razão e no senso comum, de que o Magistério não pode contradizer-se e que qualquer contradição efetiva do que o Magistério ensina não pode, por isso mesmo, pertencer ao Magistério.

Se assim não fosse não haveria Magistério mas somente um Oráculo de Roma que anunciaria periodicamente “novos ensinamentos que contradizem completamente os ensinamentos que o Magistério ensinou desde os tempos apostólicos”…

E a propósito, quando anunciará Francisco a absoluta inadmissibilidade do aborto – uma pena de morte em massa para os inocentes – de acordo com o infalível ensinamento moral da Igreja, declarando assim no Catecismo que a Igreja “empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo”?

Conhecemos a resposta a essa pergunta. O mesmo Papa que pede a abolição mundial da pena capital para os culpados nunca exigiu a abolição mundial do assassinato de inocentes no útero, nem mesmo quando está este prestes a ser legalizado na Irlanda outrora católica.

Francisco ultrapassou claramente a sua autoridade de um modo que a Igreja nunca viu antes e fê-lo durante a pior corrupção moral que a hierarquia católica alguma vez mostrou.

Tal é a crise, cada vez pior, da fé e da disciplina que agora parece que só o Céu poderá resolver com a mais dramática das intervenções.

A edição original deste texto foi publicada pelo Fatima Center a 2 de agosto de 2018. Tradução: odogmadafe.wordpress.com

Nota da edição: o conteúdo do texto acima é da inteira responsabilidade do seu autor, salvo algum eventual erro de tradução. Sempre que possível, deve ser lido na sua edição original.

Basto 8/2018

Será o Papa mesmo infalível?

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Também Eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Abismo nada poderão contra ela. Dar-te-ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na terra ficará ligado no Céu e tudo o que desligares na terra será desligado no Céu.» (Mt 16, 18-19)

É claro que o Papa é infalível. É infalível quando fala ex cathedra, a partir da Cadeira de São Pedro, em nome de Deus.

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São Pedro – Vasco Fernandes, 1506

A infalibilidade papal é um dogma da Igreja Católica, portanto incontestável e irrevogável, uma verdade de Fé da qual depende a nossa salvação. A infalibilidade papal foi declarada dogma através da constituição dogmática Pastor Aeternus, promulgada pelo Papa Pio IX, a 18 de julho de 1870, durante o Concílio Vaticano I.

Definição dogmática da Infalibilidade Papal:

O Romano Pontífice, quando fala ex cathedra, isto é, quando no exercício de seu ofício de pastor e mestre de todos os cristãos, em virtude de sua suprema autoridade apostólica, define uma doutrina de fé ou costumes que deve ser sustentada por toda a Igreja, possui, pela assistência divina que lhe foi prometida no bem-aventurado Pedro, aquela infalibilidade da qual o divino Redentor quis que gozasse a sua Igreja na definição da doutrina de fé e costumes. Por isto, ditas definições do Romano Pontífice são em si mesmas, e não pelo consentimento da Igreja, irreformáveis.

(in constituição dogmática Pastor Aeternus)

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Concílio Vaticano I – (gravura atribuída a Karl Benzinger, 1873)

O dogma atesta então que o Papa é de facto infalível mediante determinadas condições, a saber: (1) quando fala ex cathedra, ou seja, a partir da Cadeira de Pedro, em ato formal e solene dirigido a todos os cristãos do mundo inteiro, (2) para definir, ou seja, clarificar e deliberar (3) em matéria de Fé ou de moral (costumes).

As condições estipuladas pelo dogma apenas são reunidas em simultâneo em momentos muito raros e extraordinários da história da Igreja como, por exemplo, para a proclamação de um dogma. Reunindo estas condições, o Papa é infalível, não erra porque beneficia da garantia de assistência plena do Espírito Santo. A última vez que um Papa falou ex cathedra foi em 1950, quando Pio XII definiu o dogma da Assunção da Virgem Maria.

Fora destes momentos solenes e singulares da história da Igreja, o Papa não é infalível, portanto pode errar. Neste sentido, o Papa não é infalível quando telefona a alguém ou envia uma carta com opiniões pessoais; quando dá uma entrevista a bordo de um avião; quando escreve uma controversa nota de rodapé num documento oficial da Igreja; quando fala de outras matérias que não dizem respeito à Fé ou à moral; quando age em tantos e variados contextos. E em caso de erro, deve ser fraternalmente corrigido.

Para além do Papa, o conjunto de todos os bispos do mundo reunidos em concílio ecuménico, em união com o Papa (o primeiro dos bispos), também goza de infalibilidade.

Fora dos concílios ecuménicos, os pastores da Igreja, incluindo o próprio Papa, gozam de infalibilidade apenas quando ensinam e promovem uma verdade de fé ou de costumes já professada e sustentada por toda a Igreja Católica, ou seja, quando o seu ensinamento se enquadra no magistério da Igreja, o qual, por si só, é infalível.

O magistério da Igreja é formado pelo conjunto de ensinamentos de Fé e de costumes unanimemente professados por toda a Igreja Católica ao longo do tempo, de forma clara e inequívoca.

Os Papas devem ser amados e respeitados por toda a Igreja, porém, as suas palavras, gestos ou atitudes não podem servir de referência para os cristãos quando constituem erros doutrinais ou pastorais. Os erros devem ser corrigidos, o próprio São Paulo corrigiu os erros do São Pedro, o primeiro Papa (Gl 2, 11-16). “Corrigir os que erram” é uma das 14 Obras de Misericórdia, a terceira do grupo das espirituais.

Hoje, dia 22 de fevereiro, no nosso calendário litúrgico é o dia da Cátedra de São Pedro.

Oremus pro Pontifice nostro.

Dominus conservet eum, et vivificet eum, et beatum faciat eum in terra, et non tradat eum in animam inimicorum eius.

Basto 2/2017