Ferida, mas a redescobrir-se: líder da Igreja na Ucrânia descreve o país dois anos depois

Sviatoslav Shevchuk, líder da Igreja Greco-Católica Ucraniana, em entrevista exclusiva à Aleteia, vê a sua nação redescobrir a sua herança cristã.

Por John Burger 

A Ucrânia é uma nação ferida, mas que se redescobre devido a uma ameaça existencial, disse o líder da Igreja Greco-Católica Ucraniana numa entrevista à Aleteia.

Após 10 anos de defesa do seu território contra a Rússia, incluindo dois anos de uma invasão em grande escala que levou à maior crise humanitária na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, os ucranianos estão cansados ​​– mas determinados a sobreviver como um Estado independente, disse Sua Beatitude Sviatoslav Shevchuk, que preside a maior Igreja Católica Oriental em comunhão com Roma.

A guerra também parece estar a levar a um aprofundamento da fé para alguns.

Muitos ucranianos estão a redescobrir que somos cristãos como nação e que acreditar em Deus significa ter uma vitalidade especial que nos dá uma resiliência especial nesta situação.

Sua Beatitude Sviatoslav, que é o Arcebispo Maior de Kiev-Halych, explicou como os ucranianos têm um tesouro espiritual ao serem capazes de contemplar a Palavra vivificante de Deus e receber os sacramentos da Igreja no meio de extremas dificuldades.

Numa conversa de 45 minutos, Sua Beatitude afirmou que o presidente russo Vladimir Putin, que lançou a invasão à Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022, não acredita na existência de um Estado Ucraniano, facto que Sviatoslav caracterizou como delirante. Esta postura, disse o patriarca, é o que bloqueia a possibilidade de negociações sérias que levariam ao fim da guerra.

Sua Beatitude também falou das suas próprias “feridas” e do que significa ser sacerdote e bispo ministrando àqueles que estão traumatizados pela guerra. Também especulou sobre a necessidade do perdão como parte do processo de cura pelo qual os ucranianos devem passar. Ele detalhou sua visão de como tal perdão poderia acontecer.

Revelou ainda que visitará Washington DC e Nova Iorque no início de março.

O Arcebispo-mor falou via Zoom a partir do seu escritório em Kiev, no dia 15 de fevereiro. Uma gravação da entrevista pode ser encontrada aqui e no final deste artigo. A seguir está uma transcrição, que foi editada para maior clareza.

Menos ucranianos

— Beatitude, como está a Ucrânia agora, em comparação com há dois anos?

Bem, a Ucrânia é um país ferido. Temos alguns territórios ocupados pelos russos. A Ucrânia é um país em conflito, que tenta antes de tudo libertar os territórios ocupados, que tenta trazer uma nova esperança ao povo, que tenta superar a dor das feridas que foram recebidas.

Mas também muitas cidades e aldeias na Ucrânia foram destruídas, especialmente no sul e na parte oriental da Ucrânia. Seis milhões de ucranianos deixaram a Ucrânia – basicamente mulheres e crianças. A maioria deles permanece na Europa e nos países vizinhos, mas há hoje menos ucranianos do que há dois anos. É até difícil calcular quantas pessoas vivem hoje no nosso país, mas há mais ou menos cerca de 30 milhões de ucranianos que vivem hoje na Ucrânia.

— Como vê a defesa da Ucrânia? Como está o seu nível de confiança? Acha que a Ucrânia acabará por vencer, porque se tem falado muito sobre o atraso na ajuda militar do Ocidente e o facto de que os militares ucranianos estão a enfrentar tantas dificuldades com a escassez de munições? Como evoluiu a sua atitude desde o início da grande invasão?

Bom, no começo ficámos muito chocados com essa invasão. Ninguém estava preparado. Hoje estamos cansados, mas não desanimamos. Estamos feridos, mas venceremos  porque não temos escolha. Para nós é uma questão de existência. E, por unanimidade, o povo da Ucrânia compreende que não há forma de construirmos o nosso futuro, de como sobrevivermos como nação sem nos defendermos. Este é o sentimento mais importante.

É claro que a dor das feridas causadas pela guerra está a aumentar. Precisamos de apoio mundial para podermos prevalecer. Mas a resiliência do povo ucraniano é espantosa. Nestes dois anos, redescobrimo-nos muito. Descobrimos quantos heróis temos como nação. E aqueles soldados que morreram por causa da liberdade e da libertação da nossa nação, tantas pessoas que desistiram não só das suas vidas, mas de todos os seus pertences. Isso é algo muito, muito novo e poderoso. Recordámos esses esforços notáveis ​​em prol da liberdade e da independência na Ucrânia Ocidental. Mas o resto da Ucrânia, especialmente a Ucrânia central, o norte da Ucrânia, o leste da Ucrânia, o sul da Ucrânia, durante muitos séculos consideraram os russos como nossos irmãos, nossos vizinhos.

Mas hoje nasceu esta nova sociedade, uma nova nação com consciência de que somos um país independente, uma nação independente, que somos diferentes. Estamos a redescobrir o milénio do nosso Estado. Estamos a redescobrir a importância de falar ucraniano, a importância de preservar a nossa identidade cultural. Muitos ucranianos estão a redescobrir que somos cristãos como nação e que acreditar em Deus significa ter uma vitalidade especial que nos dá uma resiliência especial nesta situação.

Portanto, há esta nova manifestação do espírito ucraniano que está a acontecer neste momento entre nós.

Hoje estamos cansados, mas não desanimamos. Estamos feridos, mas venceremos porque não temos escolha.

— De que forma os acontecimentos dos últimos dois anos o afetaram, na sua vida pessoal, na sua vida espiritual? Falou muito sobre a necessidade de curar as feridas da guerra, sente-se pessoalmente ferido de alguma forma com essa experiência? Como está pessoalmente e como cuida de si próprio?

Bem,  estou ferido. Sempre que mísseis russos sobrevoam a minha casa, a minha primeira reação é de hiperatividade. Estou a ficar hiperativo porque a intensidade da minha vida aumentou muito. Nunca tive uma vida fácil como líder da Igreja, mesmo antes da invasão russa, mas quando a guerra começou, a minha atividade aumentou talvez 10 vezes. Estou sempre a tentar dar-me pelo meu povo – estar com eles, especialmente nessas situações perigosas.

Lembro-me daqueles primeiros meses da guerra, quando estávamos praticamente cercados aqui em Kiev. Tentava inspirar o meu povo, mas a minha pergunta foi sempre: “Senhor, onde estás nestas circunstâncias?” Procurava encontrar sinais da presença de Deus entre nós, inspirar-me ao encontrá-Lo, e depois, como bispo, como crente, mostrar aos outros o caminho para Deus — presente entre nós. É assim que a minha vida é hoje.

Além disso, estou em mudança… Estou a visitar… Não basta ficar em casa e rezar. Não, é preciso ser uma pessoa muito flexível e muito dinâmica. É preciso estar em todos os lugares porque as pessoas esperam que as visitemos. E posso testemunhar quão importante é a presença dos sacerdotes e dos bispos entre o povo que sofre. Eu chamaria a isso o sacramento da presença. Mesmo que não se consiga fazer muito, que não se consiga sequer explicar porque isto está a acontecer agora àquelas pessoas, mesmo que se esteja de mãos vazias, é importante estar presente, estar presente. E este encontro revela algo que trazemos dentro do nosso coração.

É interessante que na Festa da Apresentação de Nosso Senhor no Templo, quando São Simeão diz à Virgem Maria: “A espada traspassará o teu coração, para que os pensamentos mais profundos de muitos corações possam ser revelados”, experimentando a dor, as intenções mais profundas do seu coração são iluminadas. Quando há uma guerra, um perigo repentino, todos os tipos de máscaras caem. Muitas pessoas revelam o rosto autêntico, a identidade pessoal autêntica, as intenções ocultas do seu coração. Posso testemunhar que isso está está a acontecer.

Outra coisa que experimentei realmente: o poder da Palavra, porque vivendo no meio de uma cultura de ruído – demasiada informação que chega todos os dias – perdemos o sentimento da importância, do poder de uma palavra. Uma palavra não é um simples veículo de mensagem e informação. Uma palavra não é um simples ruído que me ajuda a comunicar. Uma palavra é um poder.

Nas sagradas escrituras, descobrimos que a Palavra é o poder criativo de Deus. Com a Sua Palavra, Deus criou o mundo. Mas a Palavra também é algo que nos torna humanos semelhantes a Deus, o Criador. É por isso que muitas vezes encontramos em diferentes livros da Bíblia a expressão de que a Palavra é algo que cria uma situação nova. [O Evangelho e a Carta de São Tiago dizem] que no final da história humana temos de dar uma resposta, temos de responder a cada palavra que saiu da nossa boca. Porque se estou a amaldiçoar, mesmo que feche a boca, a maldição é um poder maligno que destruirá novamente, continuará a destruir, uma maldição como uma destruição – e uma bênção, como o poder do bem que cura, que eleva o Espírito, traz esperança.

E sendo um pregador, trazendo a Palavra de Deus, posso testemunhar como esse poder funciona. E no meio da guerra, o que significa ser bispo? Antes de tudo, ser mensageiro, portador da Palavra de Deus, Palavra do Evangelho. Tenho testemunhado o poder extraordinário da Palavra de Deus que cura, cria novas situações, ilumina novas perspectivas, ajuda as pessoas a encontrar a presença de Deus nas suas vidas, a aumentar a sua resiliência, a inspirá-las.

Mas ser bispo também significa trazer a graça de Deus e o poder do Espírito Santo e celebrar os sacramentos. Sem o sacramento da Eucaristia e sem o sacramento da penitência, não sobreviveríamos. E há uma espécie de conversão na Ucrânia, que pede o sentido do nosso sofrimento, que podemos redescobrir ouvindo a Palavra de Deus – a Sagrada Escritura, o Santo Evangelho – mas também há uma conversão entre tantas pessoas porque procuram os sacramentos da Igreja. Tantos batismos de pessoas que nunca foram à igreja. Tantas confissões – confissões muito tocantes – que realmente converteram a vida das pessoas.

Estamos também a tentar promover uma nova forma de cuidado pastoral. Talvez no Ocidente o maior inimigo do coração e da alma cristã seja o conforto, o luxo, o prazer e como resistir a esta cultura consumista. Esse é um grande desafio. Mas na Ucrânia enfrentamos um desafio diferente. Estamos a viver no meio de adversidades, dores, tragédias, perigo constante de morte. Há serviço pastoral por entre a dor e a tristeza, cuidado pastoral às pessoas que sofrem, que choram. Não é uma pastoral fácil porque muitas vezes não se pode dizer nada. Só se pode estar presente, chorar com essas pessoas e compartilhar a sua dor.

Essa dor afeta-nos porque, ao compartilhá-la, transportamos a sua dor no coração. E é preciso cuidado com o que se vai fazer com isso, muita dor no coração. Essa dor, de certa forma, contamina-nos e temos de orar.

É assim que redescobrimos no modo pastoral de acompanhar a dor a importância da oração, porque a oração não é um símbolo, um ritual, não é uma simples cerimónia. Uma oração é um poder que nos atravessa coração. A oração é comunhão com Deus. A oração é algo que nos transforma a nós e à realidade envolvente.

E estamos a testemunhar como as pessoas rezam quando as bombas caem sobre elas. É interessante porque muitos psicólogos diferentes também estão a tentar estudar essa situação, como as pessoas podem viver e superar a dor e a tristeza. E muitas pessoas diriam: “Muito bem, é normal que durante o bombardeamento de mísseis russos, as pessoas se escondam nos bunkers, nos abrigos subterrâneos e tenham medo”. Mas no meio desse medo, depende do que as pessoas estão a fazer. Se estiverem simplesmente a tremer, esse medo pode destruí-las, pior até do que o míssil russo, porque um míssil pode afastar-se e atingir outra cidade. Mas o nosso medo pode destruir destruir-nos.

Mas se no meio desse medo cantamos, principalmente se rezamos, somos capazes de transformar o nosso medo numa energia especial que nos dará a possibilidade de sobreviver.

Talvez o que estou a contar-lhe seja a minha experiência pessoal – da pessoa ferida que está a tentar superar seu próprio medo para encontrar Deus no meio da dor, da adversidade e da tristeza. Mas esse é o nosso tesouro espiritual que estamos a reunir, a arrecadar agora mesmo como um povo de fé.

Posso testificar que a esperança surge apenas como consequência da nossa fé. Somente aqueles que acreditam em Deus têm esperança. A esperança não é uma simples ilusão ou expectativa. A esperança não é um sentimento simples. A esperança é uma virtude teológica que brota da fé. E a esperança cresce e pode realizar-se na terceira importante virtude cristã, que é o amor. A esperança sempre nos leva ao amor. E o amor é o maior poder que pode transformar e curar as suas feridas. Talvez se recolhermos apenas as dores, as feridas e as outras coisas do seu coração, sem nenhuma transformação dessa energia em boas ações de amor, caridade, solidariedade, essa energia explodirá dentro de nós. Mas se transformarmos esse trauma psicológico em atividade positiva, ajudando os outros, ajudámo-nos a nós mesmos.

Eu chamaria a isso o sacramento da presença. Mesmo que não consigamos fazer muito, que não consigamos nem explicar porque está usto a acontecer agora àquelas pessoas, mesmo que estejamos de mãos vazias, é importante estar presente, estar presente

“Aprendi muito sobre reconciliação”

— Há pouco falou do sacramento da penitência, que envolve a reconciliação. Costuma-se dizer que o perdão é uma parte vital da cura e o você enfatizou tanto esta necessidade de curar as feridas da guerra. Há tantas pessoas na Ucrânia que têm algo a perdoar: pessoas inocentes foram mortas, casas destruídas, mulheres violadas  – todos os tipos de atrocidades durante a guerra. Vê o perdão entrar eventualmente em ação no processo de cura, à medida que, se Deus quiser, a guerra termina, as pessoas precisarão de lidar com essas feridas e ofensas. Como seria esse perdão?

Bem, eu aprendi muito sobre reconciliação no meio desta experiência. Em primeiro lugar, eu próprio e o povo da Ucrânia compreendemos que a reconciliação vem antes de mais nada da sua reconciliação pessoal com Deus. E o perdão só pode ser compartilhado. Então eu perdoo-te não porque sou tão corajoso, tão bom. Não, eu perdoo-te porque já fui perdoado antes. Então, para se poder perdoar, é preciso experimentar o perdão. É por isso que o apóstolo Paulo se considerava um mensageiro da reconciliação. E ele começava com um apelo à reconciliação com Deus. Essa é a mensagem que ele trazia como a primeira e fundamental para aqueles a quem pregava o Evangelho de Jesus Cristo: Amados, por favor, reconciliai-vos com Deus.

Portanto, esta é a dimensão vertical da reconciliação: se estou reconciliado, posso perdoar. Não no sentido oposto.

A segunda verdade, muito importante, sobre a reconciliação e o perdão é que temos de compreender que a reconciliação de que estamos a falar neste momento, especialmente no meio da guerra, não é a reconciliação das nossas ideias, da nossa maneira de pensar. Não nos reconciliamos quando pensamos da mesma forma; não coordenamos simplesmente a nossa maneira de compreender a realidade. Não é reconciliação, porque podemos assinar um acordo de paz; podemos mais ou menos conciliar as nossas ideias sobre como viveremos no futuro. Mas essa seria simplesmente a reconciliação das nossas categorias mentais. A reconciliação e o perdão de que falamos é a reconciliação dos corações, a reconciliação das pessoas humanas, o restabelecimento e a cura das relações humanas. Esse não é um processo fácil. Tu podes concordar com alguns princípios. Talvez eu possa concordar: Ok, o meu pai faleceu; ele não está agora ao meu lado. Mas para aceitar isto e aceitar que não há como restabelecer com ele a minha relação pessoal hoje como era antes, temos que passar por este processo de aceitação.

Assim, a reconciliação entre os povos como cura das nossas relações está ligada à superação do trauma da guerra, que provavelmente nos marcará durante décadas no futuro. E falando sobre a reconciliação e o perdão entre as nações, é um longo, longo processo de cura. O processo de abertura de um diálogo de verdade, o processo de rejeição de uma determinada forma de comportamento humano, é por isso que temos de investigar crimes de guerra. E somos duas nações, russos e ucranianos, que serão vizinhas no futuro, porque este é o nosso ambiente geográfico em que Deus quer que vivamos, mesmo no futuro. Portanto, temos de rejeitar uma forma especial, muito específica e errada de estabelecer as relações entre as nossas nações. Temos que processar e condenar uma forma de comportamento tão especial.

Então temos que fazer justiça às vítimas. Temos que reparar os danos que causamos uns aos outros. Só depois disso poderemos falar sobre o acordo das nossas ideias, como iremos cooperar no futuro. E só então, como fruto da cura, da restauração, podemos falar de um perdão autêntico.

Então, esse é um processo de cura dos corações humanos. Não podemos forçar isso. Mas temos de orar, temos de trabalhar fortemente. Penso que a própria noção de perdão e reconciliação é algo profundamente e autenticamente cristão. Nós, como cristãos, não podemos perder esta importante mensagem do Apóstolo Paulo de sermos um povo de paz e reconciliação com Deus e com o próximo.

—  Ontem, o senhor falou numa conferência de imprensa patrocinada pela  Ajuda à Igreja que Sofre, e respondeu a uma pergunta sobre a recente entrevista que Tucker Carlson conduziu com Vladimir Putin . Você disse que na verdade não tinha visto a entrevista e que não tinha tempo para isso. Disse que preferia passar o tempo a ouvir as pessoas afetadas pela guerra, em vez de ouvir “um homem tão louco”.

Mas gostaria de ouvir a sua opinião sobre algumas das posições que Putin expressou, uma vez que Tucker Carlson tem bastantes seguidores e influência nos EUA. E há uma percentagem considerável de eleitores que se opõe a um maior financiamento da Ucrânia e que simpatizam com Putin. Alguns comentaristas que li disseram que Putin expressou nesta entrevista pontos de vista que expressou muitas vezes no passado, por isso tenho a certeza de que conhece os seus argumentos. Por exemplo, você poderia, de seguida, responder às três questões que ele levantou e eu coloco-as uma a uma.

Em primeiro lugar, ele disse que certas terras no leste e no sul da Ucrânia eram historicamente terras russas e que a Rússia tem o direito de recuperá-las.

Bem, em primeiro lugar, nestes dois anos de guerra mortal, desenvolvemos a nossa própria maneira de nos protegermos, a nós mesmos, aos nossos corações e mentes contra a propaganda russa, porque essa propaganda destrói-nos. É assim que teremos que nos distanciar especialmente de qualquer mensagem ou entrevista que venha do principal criador dessa propaganda – o sr. Putin. É simplesmente assim que protegemos a nossa integridade, porque a guerra na Ucrânia não começou com tanques, mísseis e balas, a guerra começou com uma mentira – uma mentira e uma distorção não só da história, mas até do tempo presente, a distorção do futuro.

Então, claro, o primeiro ponto da propaganda russa é negar a própria existência da nação ucraniana. Então porque é que não mantêm qualquer tipo de diálogo com o Estado ucraniano como sujeito de direito internacional? Porque negam a existência da nação ucraniana. Para eles, a Ucrânia é um território, não um povo, não um Estado, não uma determinada comunidade com um contexto histórico. Para eles, é um território. Então é por isso que ao falar da Ucrânia, ele começou por falar do território. Mas da mesma forma, a China pode reivindicar o território da Rússia. Da mesma forma, a Ucrânia pode afirmar que a parte norte do território da atual Rússia era o reino de Kiev – Kievan Rus’, que naquele século estava presente nesse território específico.

Portanto, usar argumentos históricos distorcidos, dizer que temos o direito de eliminar um povo que hoje vive neste território é um crime.

— E o senhor mencionou ontem na conferência de imprensa que em lugares como Bucha, fora de Kiev, quando os russos invadiram pela primeira vez, há dois anos, havia listas de pessoas que eram artistas e escritores que promoviam a ideia de uma nação ucraniana. E eram alvos para tentar eliminar qualquer sentimento de nação ucraniana.

Sim, como sabe, este não será o momento de apresentar a versão autêntica do passado que nós, como ucranianos, vemos como a nossa história, mas o que ele disse sobre os territórios históricos como pretensões russas na Ucrânia é uma simples mentira.

— Em segundo lugar, Putin argumentou que os Estados Unidos e o Ocidente deveriam parar de apoiar militarmente a Ucrânia e entrar em negociações com a Rússia sobre o fim do conflito.

Sim, porque para a Rússia acabar com o conflito significa a destruição total da Ucrânia. O objetivo desta invasão era a desnazificação e a desmilitarização, o que significa limpeza étnica: território ucraniano sem povo ucraniano, sem um Estado ucraniano, sem aqueles que serão capazes de defender as suas vidas. É por isso que ele quer que os ucranianos sejam exilados ou mortos – simplesmente desapareçam como nação. Assim poderão acabar com a guerra: guerra existencial, guerra total, guerra genocida, guerra neocolonial.

É claro que, desta forma, eles confessam que neste momento não conseguem alcançar os seus objetivos porque os ucranianos estão a resistir, porque os ucranianos recebem apoio e solidariedade mundial. Portanto, ele estava a transmitir uma mensagem não apenas aos EUA e aos aliados da Ucrânia, mas também aos ucranianos: “Desisti. Eu sou maior do que vós. Tende medo. Eu vou e mato-vos.” Isso é simples chantagem.

E é uma pena dizê-lo, mas neste momento, como disse anteriormente, o diálogo não é possível e não é porque Ucrânia existe ou porque o Ocidente apoia a Ucrânia. Mas o diálogo não existe porque Putin não aceita a realidade objetiva. Se ele e o seu grupo político aceitarem a existência do Estado Ucraniano, esse diálogo, que pode pôr fim à guerra sem sentido, pode começar imediatamente. Assim, no início da guerra, o Presidente Zelensky tentava constantemente promover o diálogo com o sr. Putin, apenas para impedir a matança insensata de pessoas. Mas o que ouvimos do lado russo foi: “Vós não tendes o direito de existir, portanto não serão objeto do nosso diálogo”.

Assim, o governo ucraniano, os representantes do Presidente Zelensky compreenderam que neste momento a única coisa que podemos fazer é defender-nos. É isso que a Ucrânia está a tentar fazer neste momento. Não é existência da Ucrânia e do apoio que recebe, que há um obstáculo ao início das negociações, a negação da subjetividade e da existência da nação que conta com milhões de pessoas. Essa é uma causa autêntica deste confronto sem sentido.

— Um último ponto. Algumas pessoas argumentaram que se a Rússia prevalecer na Ucrânia isso apenas alimentará o apetite de Putin por mais terras. Na entrevista, Putin afirmou não ter interesse em invadir a Polónia ou a região do Báltico.

Putin é mau na construção de algumas estratégias, mas é bom na promoção de alguns movimentos tácticos. Portanto, o seu primeiro desejo é restabelecer a União Soviética. Ele deu ordens precisas ao seu povo há quase 20 anos para avançar nessa direção.

Portanto, o seu primeiro objetivo é reconquistar e restabelecer a União Soviética. Portanto, não a Polónia, nem os outros países ocidentais, mas os países bálticos serão o principal alvo da Rússia. Mas o restabelecimento do império será apenas o primeiro passo, tornando-se então novamente aquele nostálgico e utópico império da Grande Rússia. Tentarão impor os seus interesses geopolíticos ao resto do mundo. Assim, na sua mente, a imagem das relações internacionais e da ordem mundial é a mesma que foi criada na reunião de Yalta após a Segunda Guerra Mundial. Declararam publicamente que a NATO tem de se afastar dos países orientais porque essa é a esfera dos seus interesses, os chamados países do Pacto de Varsóvia no passado.

Portanto, Putin quer dividir o mundo como aconteceu na época da Guerra Fria. O primeiro passo é restabelecer esta União Soviética e o segundo é restabelecer a Rússia como uma nova União Soviética, na qual seremos a potência mundial que impõe este interesse geopolítico ao resto do mundo.

Esta é então a versão russa de um slogan muito famoso nos EUA: Tornaremos a Rússia grande novamente.

— Uma última pergunta, Beatitude. O senhor visitou recentemente o Canadá. Foi a primeira vez qu esteve na América do Norte desde antes desta grande invasão, há dois anos. Exceto nas visitas ao Vaticano e a outras partes da Europa, a guerra manteve-nos bastante perto de casa. Você visitará alguma outra parte da América do Norte num futuro próximo? Quais são seus planos para viagens internacionais?

Bom, se for a vontade de Deus, provavelmente visitarei os EUA no início de março, porque temos uma sessão do Sínodo Permanente dos nossos bispos já convocada e preparada em Washington DC e concluiremos nossa sessão do Sínodo Permanente em Nova York. Esse será o futuro mais próximo e depois veremos.

— Quais são algumas das preocupações do Sínodo Permanente neste momento? Que questões estão a ser tratadas?

O Sínodo Permanente é um instrumento sinodal muito especial que ajuda o chefe da Igreja a governar. Esta é a forma de governar a Igreja Católica Oriental de acordo com o Código de Direito Canónico para as Igrejas Católicas Orientais.

A principal preocupação é a resposta pastoral adequada ao desafio da guerra. Existem três prioridades que definimos como a nossa prioridade pastoral para os próximos cinco anos:

Primeiro, viagem e acompanhamento aos deslocados internos e aos refugiados de guerra. Temos de descobrir onde eles estão e temos que caminhar com eles para os proteger, para lhes prestar um cuidado pastoral adequado.

A segunda, a cura das feridas da guerra através de formação especial, programas especiais, cooperação especial com psicólogos, terapeutas, aqueles que prestam reabilitação a quem dela necessita e assim por diante.

E o terceiro é a família: a pastoral da família ucraniana no contexto de guerra, porque a família, como união sacramental do homem e da mulher, é uma instituição muito ferida nas circunstâncias de hoje. Entendemos que a família está no coração e no futuro da sociedade ucraniana e, mais uma vez, a pastoral da família está entre as nossas prioridades neste momento.

Fonte: aleteia.org e ugcc.ua em 23 de fevereiro de 2024 (tradução nossa).

Líder dos católicos ucranianos: “É com grande dor que tomamos conhecimento das palavras do Papa Francisco” elogiando o despotismo russo

Archbishop-mor D. Sviatoslav Shevchuk de Kiev-Halych em audiência privada com o Papa Francisco, no dia 7 de novembro de 2022. Foto: Vatican Media.

Francisco dirigiu-se à juventude católica da Rússia, por video conferência, no dia 25 de agosto de 2023, como parte do 10.º Encontro Pan-Russo da Juventude Católica, realizado em São Petersburgo.

Presença virtual do Papa Francisco no 10.º Encontro Nacional de Jovens Católicos em São Petersburgo, Rússia, no dia 25 agosto de 2023. Foto: Vatican Media.

Declaração de Sua Beatitude Sviatoslav, Chefe e Padre da UGCC, a respeito da discussão sobre algumas das declarações do Santo Padre Francisco no encontro com a juventude católica da Rússia em 25 de agosto de 2023

É com grande dor e preocupação que tomamos conhecimento das palavras atribuídas a Sua Santidade o Papa Francisco num encontro online com jovens católicos russos no dia 25 de agosto de 2023, em São Petersburgo. Esperamos que essas palavras do Santo Padre tenham sido ditas espontaneamente, sem qualquer tentativa de avaliação histórica, muito menos de apoio às ambições imperialistas da Rússia. No entanto, partilhamos a grande dor que causaram, não só entre o episcopado, o clero, os monásticos e os fiéis da nossa Igreja, mas também entre outras denominações e organizações religiosas. Ao mesmo tempo, estamos também conscientes da profunda decepção que causaram na sociedade.

As palavras sobre “a grande Rússia de Pedro I, Catarina II, aquele grande e esclarecido império – um país de grande cultura e grande humanidade” – são o pior exemplo do imperialismo e do nacionalismo russo extremo. Existe o perigo de que essas palavras possam ser interpretadas como apoio ao próprio nacionalismo e imperialismo que causou a guerra na Ucrânia hoje – uma guerra que traz morte e destruição ao nosso povo todos os dias.

Os exemplos dados pelo Santo Padre contradizem efetivamente os seus ensinamentos sobre a paz, uma vez que sempre condenou qualquer forma de manifestação do imperialismo no mundo moderno e alertou para os perigos do nacionalismo extremo, sublinhando que é a causa da “terceira guerra mundial” em segmentos.”

Como Igreja, queremos afirmar que, no contexto da agressão da Rússia contra a Ucrânia, tais declarações inspiram as ambições neocoloniais do país agressor, no entanto tal forma de “ser russo” deve ser categoricamente condenada.

Para evitar qualquer manipulação das intenções, do contexto e das declarações atribuídas ao Santo Padre, aguardamos um esclarecimento desta situação por parte da Santa Sé.

A Igreja Greco-Católica Ucraniana, juntamente com todos os cidadãos do nosso país, condena a ideologia do “mundo russo” e toda a forma criminosa de “ser russo”. Esperamos que o Santo Padre ouça a nossa voz.

Dentro de poucos dias, os bispos da nossa Igreja reunir-se-ão em Roma para o Sínodo anual da Igreja Greco-Católica Ucraniana. Teremos a oportunidade de encontrar Sua Santidade e transmitir-lhe pessoalmente as dúvidas e as dores do povo ucraniano, confiando no seu cuidado paterno por ele.

†Sviatoslav

Página oficial da Igreja Greco-católica Ucraniana, em 20 de agosto de 2023 (tradução nossa).

Entretanto, o Gabinete de Imprensa da Santa Sé já esclareceu que as palavras do Papa Francisco sobre a Rússia não pretendiam exaltar uma “lógica imperialista”.

As polémicas palavras de Francisco sobre a Rússia foram proferidas poucos dias antes da sua Viagem Apostólica à Mongólia, durante a qual, o Santo Padre deseja reunir-se com o líder da Igreja Ortodoxa Russa num dos aeroportos de Moscovo.

Palavras do líder dos católicos ucranianos na véspera do primeiro aniversário do início da agressão russa à Ucrânia

D. Sviatoslav Shevchuk, arcebispo-mor de Kiev-Halych, líder da Igreja Greco-católica Ucraniana, tem sido uma voz ativa e permanente no apoio pastoral ao povo ucraniano e na condenação da agressão russa. Desde o início da invasão russa em larga escala, no dia 24 fevereiro de 2022, o líder da maior igreja católica oriental tem transmitido, através das redes sociais, videomensagens diárias para o povo ucraniano.

Fonte do vídeo: Catholic News Service, em 24/02/2023.

Líder católico ucraniano: “Mundo Russo”, uma ideologia vestida com roupagem religiosa

Por John Burger

Numa mensagem de vídeo dirigida à sua alma mater em Roma, o líder da Igreja Greco-Católica Ucraniana pediu à academia católica que estude as ambições neoimperiais da Federação Russa.

“Peço-lhes que não fiquem em silêncio”, disse, no dia 19 de outubro, o arcebispo-mor D. Sviatoslav Shevchuk, de Kyiv, num relatório por ocasião do início do novo ano académico na Pontifícia Universidade de São Tomás de Aquino, em Roma. O arcebispo Shevchuk, que se doutorou em teologia moral no Angelicum, em 1999, falou sobre a ideologia do “mundo russo”, que ele afirma estar a ameaçar não apenas a sua nação, mas também as relações políticas e ecuménicas internacionais. 

A teoria do mundo russo, ou Russkiy Mir, afirma que existe uma “esfera ou civilização russa transnacional, chamada Santa Rússia ou ‘Santa Rus’, que inclui a Rússia, a Ucrânia e a Bielorrússia (e às vezes Moldova e Cazaquistão), assim como russos étnicos e pessoas de língua russa em todo o mundo”, de acordo com uma declaração elaborada pelo Centro de Estudos Cristãos Ortodoxos na Universidade de Fordham. “Sustenta que este ‘mundo russo’ tem um centro político comum (Moscovo), um centro espiritual comum (Kyiv, como a ‘mãe de todos os Rus’), uma língua comum (o russo), uma Igreja comum (a Igreja Ortodoxa Russa, Patriarcado de Moscovo) e um patriarca comum (o Patriarca de Moscovo), que trabalha em ‘sinfonia’ com um presidente/líder nacional comum (Putin) para governar este mundo russo, bem como defender uma comum espiritualidade, moralidade e cultura próprias.”

Um “verdadeiro genocídio”

No seu discurso , o arcebispo Shevchuk acusou a Rússia de estar a realizar um “verdadeiro genocídio do povo ucraniano”. No início da invasão do país por Vladimir Putin em 24 de fevereiro, a agência de imprensa russa RIA Novosti publicou o que Shevchuk chamou de manual sobre o genocídio de ucranianos. 

“Este é um programa flagrante de eliminação completa da nação ucraniana enquanto tal, que o historiador Timothy Snyder [da Universidade de Yale] descreveu como um dos documentos genocidas mais abertos”, disse Shevchuk. “Este documento pede claramente a eliminação do estado ucraniano e do povo ucraniano.”

“Soldados russos aderem a cada letra deste manual para a destruição de ucranianos”, disse ele.

Disse ainda que é “um verdadeiro choque para nós ver a justificativa cristã dessa ideologia assassina, testemunhar a completa harmonia entre as autoridades do Kremlin e a Igreja Ortodoxa Russa. Desde p Patriarca Kirill aos padres que justificam metodicamente esses crimes, vemos como a fé cristã se torna uma ferramenta ideológica para promover o nazismo russo. A justificativa e o apelo à guerra por parte da Igreja Ortodoxa Russa lembram cada vez mais a doutrina do Estado Islâmico. Aliás, os líderes desta Igreja citam-na literalmente, embora a cubram de roupagem cristã. Recentemente, vemos até mesmo os seus clérigos em paramentos litúrgicos com um lançador de granadas nas mãos disparando no campo de batalha.”

líder católico ucraniano falou sobre a sua experiência pessoal do que viu nos territórios anteriormente ocupados por soldados russos. 

“É hoje óbvio para todos nós que o mal que chegou à nossa terra tem uma componente ideológica claro e um nome específico – o mundo russo”, disse ele. 

A morte em números

O Arcebispo-mor de Kyiv citou estatísticas de organizações internacionais sobre a atual situação humanitária na Ucrânia. Desde o início da invasão russa, 422 crianças foram mortas e 805 crianças ficaram feridas. De acordo com a Missão de Monitorização dos Direitos Humanos da ONU, 6.221 civis foram mortos e 9.371 civis ficaram feridos. De acordo com o UNICEF na Ucrânia, das 3,2 milhões de crianças que foram deslocadas pela guerra, cerca de 1,6 milhão de crianças correm o risco de viver no limiar da fome e correm risco de insegurança alimentar. Os ataques à infraestrutura hídrica e a falta de energia deixaram cerca de 1,4 milhão de pessoas na Ucrânia sem acesso à água. Outros 4,6 milhões têm acesso limitado.

“Esses dados, mas antes de tudo a experiência pessoal da guerra que vivemos, mostram que não estamos a falar de uma guerra comum de um país contra outro, muito menos de uma operação militar, mas de um verdadeiro genocídio do povo ucraniano e dos terríveis crimes contra a humanidade cometidos por soldados russos”, afirmou Shevchuk.

“Se o mundo moderno não condenar e impedir o genocídio do povo ucraniano, amanhã teremos ainda mais vítimas, como aconteceu no passado com o nazismo e o comunismo”, afirmou o arcebispo. Além disso – continuou – a ideologia do mundo russo destrói os fundamentos não apenas do direito internacional e da coexistência pacífica entre os povos, mas também da confiança na fé cristã num mundo secularizado.

“Convido-vos a estudar e a elaborar uma avaliação intelectual das causas e consequências da guerra na Ucrânia”, disse ele à sua audiência académica, “com atenção especial à ideologia do ‘mundo russo’, que está a tornar-se um enorme desafio à credibilidade da mensagem cristã e da verdade objetiva, uma grave ameaça ao direito internacional e à convivência pacífica entre os povos. Deste modo, apelo a todos os académicos do mundo inteiro.”

Fonte: aleteia.org em 23 de outubro de 2022 (tradução nossa).

Qual é o problema de Francisco em relação aos católicos da Ucrânia?

Foto: Vatican Media.

No oitavo consistório presidido por Francisco, que teve lugar na tarde deste sábado, 27 de agosto, o grande ausente nas escolhas papais foi, mais uma vez, D. Sviatoslav Shevchuck, o líder da maior igreja católica oriental. Este facto, como refere o Pe. Raymond J. de Souza, no National Catholic Register, representa um insulto à Ucrânia, numa altura em que o povo ucraniano é vítima de uma sangrenta agressão externa, ordenada pelo ditador assassino Vladimir Putin, com o imprimatur do líder da cismática Igreja Ortodoxa Russa.

Desde o início da agressão russa, o líder da Igreja Greco-Católica Ucraniana tem exercido uma ação pastoral muito intensa, com mensagens videográficas diárias de apoio ao povo ucraniano, em que condena, de forma clara e direta, os crimes dos invasores no seu país.

O arcebispo-mor D. Sviatoslav Shevchuck, nascido nos horrores do comunismo soviético, especialista em teologia moral e fluente em várias línguas, seria um forte candidato ao trono de Pedro num futuro conclave. No entanto, nem o seu passado pastoral comum com cardeal D. Bergoglio na Argentina foi suficiente para convencer Francisco nos sucessivos consistórios, em que tem demonstrado maior preferência por bispos progressistas e até homossexualistas.

A segunda maior das igrejas católicas continuará, deste modo, sem qualquer representação no colégio cardinalício, como tem acontecido desde 2017, após o falecimento do cardeal D. Lubomyr Husar. É desta forma que o Vaticano reconhece séculos de fidelidade dos católicos ucranianos confirmada pelo sangue de tantos mártires.

A Rússia e a liderança da igreja oficial do regime putinista agradem…

“Precisamos de tolerância zero para com Putin”. Entrevista exclusiva ao líder da Igreja Greco-Católica Ucraniana

Foto: Secretariado do Arcebispo-mor de Kyiv-Halyc.

Por Matteo Matzuzzi

Sviatoslav Shevchuk: “Isso na Ucrânia não é um conflito, é um crime contra a humanidade, há um criminoso cruel e há uma vítima inocente”. A ideologia do “mundo russo”, o papel da Igreja Ortodoxa em Moscovo, a destruição total nas aldeias e cidades: “O mundo que existia antes de 24 de fevereiro não existe mais. Nem Rússia, nem Ucrânia, nem a Europa Ocidental “

Alguns dizem que está a ocorrer um conflito na Ucrânia, os media ocidentais falam do conflito russo-ucraniano. Não, na Ucrânia não há conflito, porque o conflito sempre evoca um paradigma simétrico: dois grupos, um contra o outro, cada um com as suas próprias razões. Isso não é a realidade que se vê na Ucrânia, não há duas razões e não há verdade no meio. Aqui há um criminoso, aquele que ataca. E aqui está a sua vítima”. Sua Beatitude Sviatoslav Shevchuk, líder e pai da Igreja Greco-Católica Ucraniana, da qual também é arcebispo-mor, é claro na sua avaliação da tragédia que está a ocorrer na Europa Oriental. Nesta entrevista exclusiva concedida ao Foglio, Shevchuk descreve cinco meses de guerra, o que vê todos os dias com os seus próprios olhos e denuncia certos “mal-entendidos” ocidentais, a tendência de encontrar alguma boa razão (ou pelo menos explicável) na agressão ordenada por Moscovo.

Sua Beatitude, no Ocidente muitas vezes temos dificuldade em entender o motivo desta guerra. Talvez estejamos a usar critérios errados, talvez não entendamos completamente a ideologia que levou Vladimir Putin a atacar a Ucrânia. Fala-se da “ideologia do mundo russo”. Qual é a sua opinião sobre o assunto? 

“Há muitas opiniões e debates sobre os motivos por que a Rússia atacou a Ucrânia em grande escala, trazendo destruição, sofrimento e morte ao nosso país. Não gostaria de entrar em detalhes nestes temas sofisticados e incompreensíveis para o nosso povo, mas posso falar como testemunha ocular de tudo o que vi pessoalmente, mas sobretudo como pastor das almas em sofrimento. A Ucrânia é vítima da agressão russa desde 2014, mas desde 24 de fevereiro, nós, ucranianos, entendemos que não se trata apenas de uma guerra de um país contra outro, muito menos de uma simples “operação militar”. Visitando as cidades ucranianas que foram ocupadas pelo exército russo e depois libertadas, vi a tragédia das valas comuns de civis, ouvi vários testemunhos de vítimas de violação perpetrados por soldados russos, ficamos abalados com o testemunho excruciante dos cadáveres executados e abandonados nas ruas das nossas cidades. Infelizmente, estes não são casos únicos, vemos as ações sistemáticas do exército de Putin ao povo inocente da Ucrânia. Foram encontradas valas comuns em Bucha, Mariupol, Makariv e provavelmente haverá outras; houve muitos casos de tortura em civis, incluindo crianças. Já morreram cerca de 300 menores às mãos das tropas russas. Basta pensar que perto da velha cidade de Chernihiv, considerada pela Igreja Ortodoxa como património histórico, o exército russo construiu uma câmara de tortura! Torturaram pessoas das aldeias de Yahidne e Lukashivka no edifício da igreja. Muitos corpos mutilados foram encontrados à volta da igreja. Hoje é cada vez mais evidente, pelo menos para nós na Ucrânia, que a guerra russa contra a Ucrânia tem uma base ideológica clara chamada ideologia do mundo russo.”

Pode explicar-nos em que consiste?

“Para responder a essa pergunta, gostaria de me referir à contribuição de Timothy Snyder, o conhecido estudioso da Shoah no território da antiga União Soviética. Ele mesmo reagiu imediatamente à publicação, na página russa Ria Novosti, de um documento que explicava as razões e ordens dadas aos soldados russos para a sua missão na Ucrânia. Uma declaração intitulada ‘O que a Rússia deve fazer com a Ucrânia’, redigida por Timofey Sergejtsev, explica o que Moscovo entende por desnazificação, um dos objetivos da guerra na Ucrânia proclamado por Putin. Convido a comunidade europeia a ler atentamente esse texto para compreender em que consiste a ideologia do mundo russo. Timothy Snyder apelidou-o de manual do genocídio russo. Ele escreve: o manual russo é um dos documentos mais abertamente genocidas que já vi. Além disso, gostaria de salientar que muitos importantes teólogos das Igrejas Ortodoxas de todo o mundo condenaram a ideologia do ‘mundo russo’ como uma heresia totalitária do fundamentalismo religioso etnofilético. E um número importante de políticos relevantes identifica-a como uma forma de nacionalismo radical que pretende espalhar-se pelo mundo. A ideologia do ‘mundo russo’ nega ao povo ucraniano o direito de existir, como a ideologia da Alemanha nazista fez com o povo judeu. Desta forma, propõe-se uma nova ideologia autoritária que, nascida na Rússia graças à propaganda massiva, encontra – mesmo que pareça estranho – seguidores no Ocidente. Posso apenas testemunhar que os invasores estão a cometer, literalmente, crimes de guerra conforme prescrito no texto ‘O que a Rússia deve fazer‘. Para a população civil, tudo isso representa uma crueldade sem precedentes”. 

Recorre-se a justificações políticas e geopolíticas para explicar o que aconteceu, contando os tanques russos que entraram na sua terra natal. Mas há também, digamos, um elemento cultural que levou à guerra? Por que razão a Ucrânia é tão assustadora para Moscovo?

“A história do povo ucraniano é uma história que faz parte da história europeia, somos um povo europeu que na sua história moderna reafirmou a sua escolha a favor dos princípios e ideais da comunidade europeia. Infelizmente, na Rússia, hoje podemos ver uma síntese entre a mentalidade soviética e a imperial. A Ucrânia é hoje vítima dessa reconstrução perversa das fronteiras da ‘grande Rússia’. Tentam sempre apresentar a sociedade ucraniana como aquela que está sob a influência da imoralidade ocidental. Precisamente daí surge uma intolerância para com tudo ‘que não é nosso’, provocando e justificando o uso da violência para eliminar todos os ‘contaminados’. Uma imagem desse ‘Ocidente coletivo’ que deve ser combatido está hoje a ser projetada na Ucrânia. Para evocar uma memória histórica desse inimigo para fazer a guerra usa-se a palavra ‘nazismo’, que perdeu todo o sentido original, sendo hoje geralmente aplicada a todas as coisas ocidentais’ identificadas na identidade de um povo. Por isso, um ucraniano é referido como um herege nazi. É cada vez mais evidente que a Rússia entrou em conflito cultural não apenas com a Ucrânia, mas com tudo o que definimos como civilização ocidental. O processo de zombificação da população russa pelo regime do Kremlin produziu um tipo de sociedade antropológica muito perigosa. Repare como as valas comuns na Ucrânia se tornam motivo de alegria para muitas pessoas na Rússia. Sem compaixão, sem raciocínio sobre as razões desta guerra absurda. Infelizmente, até mesmo ao mais alto nível da Igreja Ortodoxa Russa. Assistimos de facto a uma justificação cristã da guerra russa contra a Ucrânia e à glorificação dos crimes de guerra e da ideologia da violência.”

Vimos os corpos nas valas comuns com as mãos amarradas nas costas. Os cadáveres nas ruas. Acha que há razões para se falar de genocídio do povo ucraniano?

“Não encontro outras explicações. E as razões proclamadas pelo presidente russo não têm fundamento. O verdadeiro objetivo da agressão russa é a aniquilação do povo ucraniano. Isso é confirmado tanto pelos discursos ideológicos do próprio Putin, que tantas vezes fazem referência à história ucraniana, quanto pelos crimes de guerra cometidos pelos seus soldados na nossa terra. Efetivamente, é difícil considerar isto apenas uma guerra. Desde o primeiro dia da invasão russa à Ucrânia, temos visto crimes de guerra contínuos que não param nem de dia nem de noite. Alguns dizem que há um conflito a acontecer na Ucrânia. De facto, vejo que, ultimamente, os media ocidentais falam do conflito russo-ucraniano. Não há conflito na Ucrânia. Porque o conflito sempre evoca um paradigma simétrico de discurso, conflito significa que existem dois grupos, cada um deles tem a sua própria razão e estão em conflito. E quem busca a verdade ou quer mediar o conflito sempre escuta um lado, o outro lado, e intuitivamente diz que a verdade está no meio. Isso significaria encontrar uma solução para o conflito. Mas, na verdade, não existe esse tipo de realidade na Ucrânia. Não existem duas razões e não existe uma verdade média, mas existe um criminoso, aquele que ataca, e existe a sua vítima. Não se pode dizer que haja algum tipo de conflito de interesses porque, nesse caso, colocaríamos no mesmo patamar o criminoso e a sua vítima. Portanto, também neste caso, como Igreja, devemos declarar ‘tolerância zero’ para com o criminoso. Acho que precisamos de parar de falar do conflito para passarmos a falar do crime de guerra na Ucrânia. Devemos parar de tentar defender os interesses do agressor e mediar os interesses do agressor e do agredido porque isso, de facto, não corresponde à realidade e à verdade, a verdade objetiva dos factos ocorridos. Tolerância zero para com o uso da violência… Se o interesse de um Estado provoca a guerra e está a condenar à morte um povo de mais de 40 milhões, então não é mais interesse, é crime. As razões que podem explicar ou justificar essa agressão não podem ser aceites pela civilização de hoje. Na Ucrânia está a ser cometido um crime contra a humanidade, existe um criminoso cruel e existe uma vítima inocente. Por isso, é também importante encontrar os termos certos para descrever tudo o que acontece na Ucrânia, uma vez que a palavra ‘guerra’, com o significado que temos em mente, não é mais a que pode descrever esta tragédia. Se alguém tiver alguma dúvida, convido-o a vir à Ucrânia e ver por si mesmo.”

O seu povo conheceu imensas tragédias, penso apenas em Holodomor dos anos 30, também descrito por Vasiliy Grossman, que falou da dor das mães obrigadas a ver os seus filhos morrer de fome. No entanto, os ucranianos sempre se levantaram. Qual é a força do seu povo?

“Acho que não podemos explicar numa só frase em que consiste essa força. De acordo o meu entendimento pessoal e de acordo com a experiência de como se vive a guerra nessas condições, vem-me à mente o nosso filósofo Hryhoriy Skovoroda (1722-1794), que disse – quando a rainha imperatriz Catarina o quis perto de si – que ‘a flauta e as ovelhas são mais preciosas para mim do que a coroa do rei’. Graças à sua filosofia, ele foi capaz de compreender o modo de vida do nosso povo. Ou seja, são as pessoas que acreditam na ressurreição que, através da sua cultura e filosofia nacional, veem que a vida humana é maior do que somente a vida terrena. No túmulo de Skovoroda estão as suas palavras: ‘O mundo queria me agarrar, mas não conseguiu’. Apenas isso, a fé na ressurreição e o amor à liberdade foram sempre a força do nosso povo, não para renunciar, mas para se levantar e seguir em frente. Há outro ditado popular: ‘Pensavam que seríamos enterrados para sempre, mas acabámos por ser uma semente que dá vida nova’. Talvez, mesmo agora que nosso povo está a lutar, ele está a levantar-se depois de tantas ondas de genocídio precisamente porque o Senhor nos faz ressuscitar.”

Diante de um Ocidente que muitas vezes se preocupa em discutir sobre todas as fronteiras, tréguas e mediações, o que tem vontade de dizer como pastor?

“Acho que temos que recomeçar, mas respeitando a dor da vítima. Ouçam o clamor das pessoas que estão condenadas à morte. Isso levar-nos-á a entender como devemos hoje construir a convivência entre povos e nações no terceiro milénio, porque sabemos que todas as construções mentais humanas são relativas. Se partirmos do bem-estar ou dos interesses das potências deste mundo, e se os interesses económicos prevalecerem sobre a vida humana, sobre o seu preço inexorável, então, como humanidade, estaremos acabados. Mas se partirmos do respeito pela vida humana, fazendo dela uma estratégia, uma política, até uma pastoral, começaremos pela preocupação de proteger os mais fracos, então poderemos sobreviver e reconstruir uma comunidade, mesmo a nível internacional, mais justa do que a que temos agora.”

O que viu ao visitar as aldeias devastadas por estes meses de guerra? Que emoções sentiu diante do massacre?

“A guerra não é um jogo. Parece-me que, às vezes, no Ocidente, com a palavra ‘guerra’ em mente, estão a ser feitos jogos eletrónicos. Infelizmente, aqueles que planeiam guerras nunca souberam o que realmente é uma guerra. Mas vendo a realidade da guerra na Ucrânia, estamos a lidar com a destruição total. Cidades inteiras e aldeias tornaram-se cidades e aldeias fantasmas. Também as valas comuns sem fim. E surge a pergunta: podemos viver nessas condições? O mundo quer sobreviver ou planeia a guerra? E outra pergunta: sabemos que um dia de guerra contra a Rússia custa quatrocentos milhões de dólares. Somente um dia. Então, quem é aquele que investe na morte com a mente diabólica? E se com esse dinheiro construíssemos, salvássemos vidas, não faríamos o futuro melhor na própria Rússia? E se esse dinheiro fosse investido justamente para melhorar as condições de vida dos milhões de cidadãos daquele país? Em vez de gastar tão facilmente para matar os outros… Isso significa que a guerra é sempre um crime, é sempre uma loucura, uma loucura. Quanto mais difícil, mais evidente isso se torna. A guerra travada na Ucrânia é um crime contra a humanidade.”

Você acha que quando a guerra acabar, as relações entre as Igrejas presentes na Ucrânia também mudarão?

“Até agora todos nós mudámos. Talvez nem todos tenham entendido ainda que o mundo que existia antes de 24 de fevereiro deste ano não existe mais. Nem a Rússia, nem a Ucrânia, nem a Europa Ocidental, nem os outros países. Num clique, mudámos para sempre. E se as relações entre os homens mudarem, obviamente as relações entre o homem e a sociedade, o homem e qualquer comunidade mudarão, e as relações entre as Igrejas também mudarão. Se falamos das relações entre as Igrejas na Ucrânia, devo dizer que essas relações melhoraram muito, porque estamos unidos como nunca, precisamente em nome da defesa da vida humana. Vemos que todos os particularismos, mesmo todos os interesses particulares egoístas (que às vezes até as Igrejas cultivam) são agora colocados em último lugar porque a questão existencial – como sobreviver junto com nosso povo – agora está em primeiro. Por isso colaboramos. Talvez depois venha também o nível ecuménico, doutrinário, uma reflexão que partirá dessa experiência existencial, mas quando se trata de organizar, por exemplo, um corredor verde para evacuar e salvar a vida de pessoas que estão em perigo iminente de morte, então todos se unem: católicos, ortodoxos, protestantes, muçulmanos e judeus. Colaboram precisamente para se salvar e para salvar os outros.”

Diante das valas comuns, todos rezam juntos…

“Exatamente, porque ali temos todos os nossos paroquianos, os membros das nossas comunidades, os familiares. Esta guerra revela, antes de tudo, que somos todos humanos e só depois pertencemos a uma certa religião. Humanidade, a natureza humana é a base que nos une. Quanto mais humanos nos tornarmos, mais unidos seremos. Mas se cairmos nessa armadilha da desumanização, serão sempre encontradas novas divisões.”

Fonte: ilfoglio.it em 26 de julho de 2022 (tradução nossa).

Bispo mais jovem do mundo é ucraniano

Enquanto uma grande parte do Ocidente, cheio da “nova misericórdia”, concentra todos os seus esforços a tentar encontrar formas de integrar o adultério, o homossexualismo, o luteranismo, a teologia da libertação e outros exotismos na nova pastoral da Igreja, o Leste continua a evidenciar uma grande vitalidade. No passado dia 21 de junho, na Ucrânia, foi ordenado o novo bispo católico de Rito Latino, D. Edward Kava, que, com apenas 39 anos de idade, é hoje o mais jovem bispo católico do mundo.

novo.bispo.ucrânia
D. Sviatoslav Shevchuk, líder da Igreja Greco-Católica Ucraniana, na Basílica Latina Metropolitana de Lviv, na Ucrânia, dá a sua bênção ao novo bispo ucraniano de Rito Latino, in  sítio oficial da Igreja Greco-católica Ucraniana, 22/06/2017

 

Eu acho que toda a Igreja Católica na Ucrânia se sente hoje amada. Este evento, que se realiza hoje em Lviv e que terá lugar em Kiev no sábado, faz-nos sentir que se abriu uma nova página na história da Igreja Católica na Ucrânia. A página que será marcada pelo amor. O amor não é apenas de Deus para nós, mas o amor fraterno entre nós, entre os dois pulmões da Igreja – o Oriental e o Ocidental”, afirmou o Patriarca da Igreja Greco-Católica Ucraniana.

(Sua beatitude, D. Sviatoslav Shevechuk insítio oficial da Igreja Greco-católica Ucraniana)

São palavras sábias, estas do líder da maior igreja católica oriental. Os dois “pulmões” fazem parte do mesmo corpo, neste caso a Igreja Católica, não pode estar um dentro outro fora. O ecumenismo jamais será verdadeiro se “confiar em Buda” e outras divindades pagãs. O ecumenismo verdadeiro deve procurar a unidade em torno da Fé verdadeira, trazendo para dentro da única Igreja fundada por Cristo todos aqueles que se encontram afastados. A conversão e o proselitismo são, deste modo, incontornáveis.

Igreja Católica significa Igreja Universal, inclui diferentes ritos e tradições, mas possui uma única Fé e uma única moral inegociáveis porque foram reveladas pelo próprio Deus.

Basto 6/2017